Não é de hoje que Tom Zé vive advertindo por aí: ?a canção bonita acabou de morrer?. Você pode achar que a máxima praticada em todos os seus discos desde 1976 ? desconstruir aquela música perfeita, que agrada aos ouvidos e só conforta, ao invés de incomodar ? caiu por terra agora. Espere um instante então e dê play em ?Vira Lata na Via Láctea? (Independente), prepare-se para ouvir a filosofia de ordem de Tom Zé ser invertida por ele mesmo para constatar e avisar uma realidade mais do que certeira: ?A humanidade é infeliz por ter feito do trabalho um sacrifício e do amor um pecado?.
O fato é que o novo disco de Tom Zé não explora com virtude a esquisitice aleatória de barulhos de latas, enceradeiras, bicicletas e afins ? como ele sempre fez ?, confundindo a cabeça do ouvinte para explicar, explicando para confundir, let it be. É que, nesse disco, a confusão acontece de forma inversa porque Tom Zé tem belos arranjos a seu favor para compor um disco excessivamente melódico, contraposto por algumas das letras mais rasgadas, fortes e emblemáticas desde o aclamado ?Com Defeito de Fabricação? (1998), que deu definitiva visibilidade para o compositor baiano.
Em todo o álbum, a humanidade é questionada com palavras cuidadosamente encaixadas entre a agressividade e a sutileza, ora vomitadas, ora acalentadas, mas sempre em cima de belas melodias e arranjos meticulosos de Marcus Preto, que assina a direção artística.
Logo de cara, Tom Zé apresenta uma ?Geração Y? em ritmo de samba cadenciado e pede nas primeiras frases um daqueles absurdos bem Tom Zé: ?ai, ai, meu bem, tire a calcinha?, antes de entoar o refrão de súplica irônica pelo ser humano: ?daqui a alguns anos / vamos ter que governar?.
Outro samba, desta vez com a participação do rapper Criolo, soa um pouco radiofônico, mas não tocaria em nenhuma estação FM do país pelo refrão que julga publicações jornalísticas do país: ?veja, isto é pouca lenha no grande bate-boca / e ainda escrevo uma carta capital / para os caros amigos desta banca de jornal?.
Mais uma pedrada melódica, ?Pour Elis? carrega um dedilhado de violão suave e solos de guitarra distorcidos por Kiko Dinucci para homenagear Elis Regina. O detalhe é que os versos são entoados por Milton Nascimento ? que ?parece chegar perto da voz de Deus?, como Tom Zé definiu sua interpretação e como a própria Pimentinha atestou ao ouvir o mineiro cantar.
Da criação musical mais envolvente do álbum, ?Salve a Humanidade? tem um arranjo criativo e dançante da Trupe Chá de Boldo para deixar um recado mais do que claro: ?o que salva a humanidade / é que não há quem cure a curiosidade / a curiosidade inventou a humanidade / o buraco da fechadura?.
Ao acabar de ouvir ?Vira Lata na Via Láctea?, o estado de choque é substituído gradualmente por uma sensação de que, sim, ele conseguiu de novo. Entre os melhores discos do ano, Tom Zé continua provando aquela sua certeza de que a linha entre uma enceradeira e um piano é muito tênue, assim como a linha entre a beleza e o incômodo também pode ser.

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