Outro dia opinei sobre a importância da (re) introdução do ensino de Humanidades na graduação médica, destacando as iniciativas da nossa UEPG na área, e apenas triscando o vasto universo de possibilidades que o assunto impõe. Permitam-me hoje compartilhar divagações a respeito de um assunto correlato, compreendido apenas como “multidisciplinaridade”, mas que se reveste de novos significados quando sob o guarda-chuva de um conceito tão novo quanto revolucionário: a Saúde Única. 

Parece óbvio afirmar que a saúde de seres humanos, dos animais (que restaram) e do ambiente que nos cerca (pelo menos) estão interligadas e são interdependentes. Toda a ciência disponível aponta para isso, e o conhecimento médico reconhece que a maioria das infecções que afetam humanos têm origem na natureza (são zoonoses, doenças causadas por agentes que migram de hospedeiros animais para a espécie humana). Iniciativas que englobem o estudo conjunto desses três componentes da saúde, porém, são recentes. O termo evoluiu do “One Medicine” (em português, “Medicina Única”) sugerido por Calvin W. Schwabe (1933 – 2012), professor de Epidemiologia da Universidade da Califórnia, para “One Health” (“Saúde Única”), conceito criado em 2003 por grupos que estudavam a interseção das medicinas humana e veterinária. 

Mais que uma curiosidade, a Saúde Única tem se mostrado especialmente útil neste século de pandemias e catástrofes ambientais, e tem sido amplamente utilizado por idealizadores de políticas públicas, clínicos e pesquisadores de várias áreas mundo afora. 

Descobertas recentes no campo das ciências da vida, como a compreensão do predomínio e da importância da espécie dominante no planeta – não, não se trata de nós, humanos, mas dos fungos – e dos mecanismos disseminadores de zoonoses para humanos, bem como avanços na genética/genômica, exigem abordagens mais holísticas do ecossistema planetário. E não se trata de alarmismo infundado, como muitos querem crer, mas da necessidade premente de aprendermos mais sobre mudanças ambientais já em trânsito, e que nem mesmo sabemos, ainda, como interpretar. Trata-se de evitar outra pandemia como a COVID-19, ou, pelo menos, melhorar nossa eficiência no combate. Trata-se de garantir água e alimento para nossos netos. 

Eu consigo entrever um futuro em que controlemos tudo no ciberespaço da Internet das Coisas – e dos seres, por que não? Consigo imaginar quantas intervenções não seriam possibilitadas, no universo real, com o controle restrito de ecossistemas por inteligência artificial, por exemplo, com o domínio da edição de genes ou com a cultura de células (como fonte de alimento e transplante de órgãos, entre outras formas).

Também consigo enxergar – com os pés no chão e um mínimo de consciência social – intervenções conjuntas em comunidades, em cidades inteiras, unindo de engenheiros a médicos, de assistentes sociais a enfermeiros, biólogos, médicos veterinários e biomédicos, sem falar de advogados e professores. Prevejo universidades finalmente realizando o sonho da extensão universitária, interpretada ao pé da letra sob o conceito de Saúde Única. 

Mas não sou ingênuo, nem otimista. O tempo urge, para usar um chavão. Espanta-me que todo esse movimento esteja apenas começando; não entendo o ser humano em sua (nossa) mania de maquiar ou negar a realidade de problemas reais (como se fosse possível evitar o tsunami, o furacão ou o terremoto). Os gênios da ciência do século XIX eram multidisciplinares como renascentistas e iluministas, não eram contidos por seus campos de estudo, mas dirigidos a um saber mais abrangente. Era inevitável, com todo o avanço tecnológico do século XX, entretanto, que nos tornássemos superespecialistas: aprendemos mais rápido sobre o universo, nas últimas décadas, do que somos capazes de compreender enquanto indivíduos. 

Abelhas, unidas, se tornam capazes de  processar informação de modo muito mais rápido que indivíduos poderiam fazer, através de ações coordenadas que ficaram conhecidas como “inteligência de enxame”, inspiradora de novos campos de estudo na robótica e na inteligência artificial. 

A união de objetivos em torno da Saúde Única pode ser o diferencial que faltava para ativar nossa consciência científica coletiva, tornar mais rápido o entendimento do mundo onde vivemos, a tempo de salvaguardar o seu futuro, o nosso, e o das espécies que tornam a vida possível e sustentável na Terra. Precisamos difundir esse conceito, repeti-lo, reiterá-lo nas escolas e comunidades, integrá-lo à base moral de nossas sociedades e cidadãos, e ao currículo de nossos cursos de graduação, Medicina inclusa. 

“O mundo dos seres vivos sobreviverá. Nós, humanos, não podemos supor o mesmo” – Richard Attenborough (1923 – 2014)

Renato Van Wilpe Bach é médico, professor e escritor 

Fonte: NCG News

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