Asia Bibi deixou a casa que dividia com o marido e os filhos e foi trabalhar em uma fazenda na aldeia de Ittanwala, a cerca de 60 km de Lahore, cidade importante do Paquistão. O local onde trabalhava é cercado de campos verdes e árvores frutíferas.

Asia trabalhou como agricultora, como muitas mulheres da aldeia. Era um dia de junho de 2009 e os trabalhadores, exaustos após horas colhendo frutas sob o sol escaldante, pararam para descansar. Alguém pediu que Asia fosse pegar um pouco de água em um poço próximo.

Ela saiu de jarro na mão e, quando voltou, bebeu um pouco de água antes de servir seus colegas muçulmanos. Eles ficaram furiosos.

Asia é cristã, e no Paquistão muitos muçulmanos conservadores não gostam de comer ou beber junto de pessoas de outras religiões. Para eles, quem não acredita em Alá é impuro.

Os colegas de Asia disseram que ela era “suja” e não era digna de beber no mesmo copo que eles. Houve discussão, e termos fortes foram ditos por ambos os lados.

Cinco dias depois, a polícia invadiu a casa de Asia e a acusou de insultar o profeta Maomé, principal símbolo do Islã, acusação feita também por um clérigo da aldeia.

Reunida em frente à residência de Asia, uma pequena multidão começou a agredi-la diante dos policiais, e ela acabou presa sob acusação de blasfêmia. Durante o julgamento, em 2010, ela se disse inocente, mas acabou sentenciada à morte.

No Paquistão, a punição por blasfêmia contra o Islã e seu profeta pode ser a prisão perpétua ou a morte. Mas muitas vezes essas acusações são utilizadas como forma de vingança por conflitos pessoais. Acusados de blasfêmia, juntamente com as famílias, sofrem represálias e ataques mesmo antes de irem a julgamento.

O marido de Asia Bibi, Ashiq Masih, e as filhas do casal, Esham e Esha — Foto: BBC

Asia passou os últimos nove anos de sua vida no corredor da morte, em confinamento solitário. Mas, depois de uma intensa mobilização social, conseguiu reverter a sentença e foi absolvida em outubro de 2018.

Ainda assim, custou a ganhar a liberdade. Foi mantida num lugar secreto por meses por causa de ameaças de morte. Agora, autoridades paquistanesas confirmam que ela embarcou em segurança para o Canadá.

‘Agonia infinita’
Desde a prisão dela, a família de Asia vive escondida e fugindo.

“Se um parente querido está morto, o coração consegue se curar depois de algum tempo. Mas quando uma mãe está viva, e ela se separa de seus filhos… A maneira como a Asia foi tirada de nós, a agonia é infinita”, explicou Ashiq, marido de Asia, à BBC News.

Enquanto conversávamos na varanda, Ashiq tentava se manter calmo, mas seu rosto tinha um ar sombrio. “Nós vivemos sempre com medo de alguma coisa acontecer conosco, há sempre um sentimento de ansiedade e insegurança. Eu deixo as crianças irem à escola, mas não deixo elas brincarem do lado de fora. Nós perdemos nossa liberdade”, afirmou.

Apesar de anos de insegurança e incerteza, Ashiq nunca desistiu da esposa. “Perdi minha liberdade, meu sustento e minha casa, mas não estou pronto para perder a esperança. Vou continuar lutando pela liberdade de Asia”, disse, há quase um ano.

No ano passado, em 31 de outubro, nove anos depois da prisão de Asia, o desejo de Ashiq foi finalmente realizado.

Contra as expectativas de milhares de muçulmanos conservadores, a Suprema Corte do país revogou sentença anterior por falta de provas e permitiu que Asia Bibi fosse libertada.

Em poucas horas, indignados com a decisão histórica, manifestantes tomaram as ruas exigindo a morte de Asia Bibi.

Por três dias consecutivos, os manifestantes tentaram submeter o governo e a nação à sua vontade. As principais estradas foram bloqueadas, carros e ônibus foram incendiados, pedágios, saqueados e policiais acabaram atacados pela multidão. Particularmente na província oriental de Punjab, muitos escritórios, empresas e até mesmo escolas foram forçados a fechar as portas.

O país assistiu às cenas de violência com horror enquanto o governo pouco aparecia. No início, o primeiro-ministro Imran Khan, em um discurso na televisão, emitiu uma advertência aos manifestantes, dizendo para eles não “entrarem em conflito com o Estado”.
Mas depois de três dias de caos crescente, o governo disse que, para evitar qualquer derramamento de sangue, seria feito um acordo com os líderes da revolta.

Imediatamente após a libertação da Asia, o líder religioso Khadim Hussain Rizvi e seu partido político de extrema-direita Tehreek-e-Labbaik Pakistan (TLP) usaram as mídias sociais para defender a desordem civil e a violência.

Rizvi e seus partidários pediram que os juízes que absolveram Asia fossem mortos e encorajaram um motim entre os militares, declarando que o chefe do Exército era um apóstata – ou seja, ele teria renunciado ao islamismo.

O líder também conseguiu apoio fora do círculo de seu partido. Vídeos nas redes sociais convocaram mais protestos, levando às ruas milhares de pessoas de diferentes segmentos sociais do Paquistão.

Rizvi também acusou o Ocidente de encorajar a blasfêmia contra o Islã e seu profeta Maomé. Em um de seus tuítes, ele disse que as pessoas deliberadamente cometiam blasfêmia para conseguir dinheiro e receber asilo dos países ocidentais.

Em outubro, depois de três dias de demonstrações de força do TLP em todo o Paquistão, o governo cedeu: concordou em não se opor a uma petição para um novo julgamento de Asia e a proibiu de deixar o país.A petição foi promulgada e os protestos cederam. Asia foi libertada da prisão, mas foi levada sob custódia protetiva.

Ainda demorou três meses para ela ser finalmente posta em liberdade. E, mesmo livre, foi mantida num lugar secreto por questões de segurança até que a saída dela do Paquistão fosse acertada.

O líder conservador e o político liberal
Poucos anos antes, Khadim Hussain Rizvi não tinha tanta influência, pois trabalhava como clérigo em uma pequena mesquita local. Apesar de trabalhar para o governo, era tido como uma figura marginal. Mas ele começou a chamar a atenção por seus sermões controversos.

Enquanto fazia sua orações, Rizvi frequentemente glorificava o assassinato de Salman Taseer, um proeminente político paquistanês que chegou a ser ministro das Indústrias e governador da província de Punjab. Ele acabou assassinado em 2011 por defender a liberdade de Asia e mudanças na legislação que prevê pena de morte por blasfêmia ao Islã.

Como governador, Taseer visitou Asia Bibi na prisão de Sheikhupura em 2010. Em uma coletiva de imprensa na TV, com Asia sentada ao seu lado, Taseer apelou ao presidente do Paquistão para perdoá-la.

Algumas semanas depois, em um dia frio de janeiro, Taseer foi assassinado por seu próprio segurança. No meio do movimentado mercado de Kohsaar, em Islamabad, Malik Mumtaz Hussain Qadri, um jovem policial, atirou no governador à queima-roupa, 27 vezes.

Qadri se tornou um herói para milhões de muçulmanos conservadores. Logo depois do crime, ele se entregou à polícia, mas disse não ter qualquer arrependimento – estava cumprindo um “dever religioso”, disse.

“A punição para a blasfêmia é a morte”, afirmou aos policiais.

Em seu julgamento, que foi realizado dias depois, Qadri foi aplaudido por centenas de fãs e regado com pétalas de rosa. Ele foi condenado à morte e executado em 2016.

Já Rizvi acabou sendo demitido de seu trabalho como clérigo por causa dos sermões que elogiavam Qadri como se ele fosse mártir. Então Rizvi se voltou para a política e fundou seu próprio partido, o TLP.

Meses depois de estabelecer o partido, os ativistas de Rizvi bloquearam uma rodovia principal, paralisando a capital Islamabad por 20 dias. Rizvi acusou o governo de blasfêmia depois que uma referência ao profeta Maomé foi deixada de fora de uma versão revisada do juramento eleitoral.

Assim, na eleição do ano passado, o até então pequeno partido populista, declarando-se defensor da honra de Maomé, atraiu mais de 2 milhões de votos. Ao longo da campanha, seus cartazes e faixas exibiam fotografias de Qadri, idolatrado como um mártir da causa religiosa.

Blasfêmia como crime
Nos últimos 30 anos, blasfêmia contra o profeta Maomé levava à pena de morte no Paquistão, mas ninguém havia sido executado.

Há ao menos 1.549 casos conhecidos de pessoas acusadas por blasfêmia contra Maomé ou profanação do Alcorão, segundo o Centro Paquistanês de Justiça Social.

Desses casos, 75 pessoas acusadas por esses crimes foram assassinadas antes mesmo de serem julgadas. Muitas foram mortas sob custódia da polícia ou linchadas pela multidão.

Um desses incidentes ocorreu quase perto da cidade de Lahore, no pequeno município de Kot Radha Kishan, nome em homenagem a dois deuses hindus.

Na região, os campos são verdes e exuberantes. A cada 800 metros em todas as direções, estão as altas chaminés fumegantes dos fornos das olarias onde se fabricam tijolos. Em cada um, centenas de blocos são empilhados em fileiras.

Foi em um desses fornos que Shahzad e Shama Maseeh, um casal cristão acusado de blasfêmia, foi queimado vivo por uma multidão, em 2014.

O jornalista local Rana Khalid relembra os eventos que levaram aos assassinatos. Ele aponta para uma pequena estrutura perto do forno de tijolos. “O casal estava trancado nessa sala se protegendo da multidão”, ele conta.

Liderada por um clérigo local, a multidão estava furiosa: vários membros subiram no telhado e abriram caminho pelo teto. O casal foi arrastado para fora.

“Eles foram brutalmente espancados com paus e tijolos e arrastados pelos homens raivosos da aldeia até o forno de tijolos e jogados lá dentro”, descreve o jornalista.

Shama estava grávida de quatro meses.

A multidão acreditava que um dia antes Shahzad e Shama haviam queimado várias páginas do Alcorão, junto com o lixo. A família do casal nega, dizendo que eles estavam queimando documentos antigos.

Cinco pessoas da aldeia, incluindo o clérigo local, foram condenadas à morte por terem assassinado o casal cristão. Outros oito moradores foram condenados a dois anos de prisão por incitar a violência.

Perseguição a muçulmanos
Mas não são apenas os cristãos que suportam o peso da controversa lei contra a blasfêmia do país. Ela também é usada para perseguir os muçulmanos do grupo Ahmadi. Essa comunidade é considerada pelo governo como uma minoria religiosa não-muçulmana. Por lei, os ahmadis não podem chamar seus locais de culto de mesquitas, são proibidos de recitar do Alcorão ou mostrar sua fé em público de qualquer maneira.

Aslam Jameel (nome fictício), um fazendeiro ahmadi, estava trabalhando em seus campos de trigo no sul de Punjab em 2009, quando foi abordado por um casal de moradores locais. Eles disseram que ele precisava correr.

Aslam tinha sido acusado de insultar o profeta Maomé por um líder religioso local e a multidão estava atrás dele.

“O clérigo alegou que, Deus me livre, eu tinha levado quatro meninos ahmadis a escrever o nome do profeta em um banheiro”, diz Aslam, com a voz embargada pelas lágrimas.

Ele esperou em casa até depois do anoitecer. Então conseguiu se esgueirar pela porta dos fundos e fugir. Não chegou muito longe antes de perceber que fugir provavelmente o colocaria em mais problemas. Para onde ele iria?

Na manhã seguinte, ele se entregou em uma delegacia da polícia local. Demorou quase dois anos até seu caso ir a julgamento – ele ficou seis meses na prisão.

“O juiz estava sob imensa pressão”, conta Aslam, emocionado. “O tribunal estava lotado de clérigos, mas ele [juiz] demonstrou uma grande coragem.”

Aslam foi inocentado por falta de provas. Quando voltou para casa, ele viu que seus pertences e animais haviam sido furtados. Ele então decidiu sair do Paquistão, e pediu asilo ao Canadá.

“Minha família foi ameaçada e assediada, minha vida e meu sustento, arruinados. Tivemos que abandonar a aldeia para salvar nossas vidas”, diz.

O estigma da blasfêmia
Para aqueles que são levados a julgamento e considerados culpados de blasfêmia, o estigma os acompanha do tribunal até as grades da prisão.

Shakeel Wajid (nome fictício), outro ahmadi, diz que a multidão se reúne para acompanhar os julgamentos. “Os juízes dos tribunais inferiores estão sob grande pressão dos tribunais superiores e dos extremistas religiosos, que se reúnem em grande número durante as audiências”, explica Shakeel. “Os juízes têm pouca segurança e também temem por suas próprias vidas.”

Depois de ser considerado culpado de blasfêmia, Shakeel passou dois anos em três prisões de segurança máxima na província de Punjab.

Ele diz que condenados por blasfêmia são mantidos em separado, em alas de segurança máxima. Algumas vezes eles têm como companheiros de cela prisioneiros com doenças mentais.

Na maioria das vezes, os detentos por blasfêmia são mantidos trancados em suas celas e, para sua própria segurança, são proibidos de comer com os outros detentos, pois há risco de envenenamento.

“Um dos meus companheiros de prisão em Rawalpindi era um professor universitário. Um aluno não concordou com sua interpretação de céu e inferno e o denunciou por blasfêmia”, conta Shakeel.

Ele acredita ter tido sorte por conseguir a liberdade. Mas, acima de tudo, Shakeel estava desesperado para conseguir limpar seu nome das acusações.

“O rótulo de blasfemo é pior que o medo da morte. É uma acusação tão séria que eu não queria morrer com isso. Eu queria que meu nome fosse limpo para que minha família pudesse sobreviver com dignidade na sociedade”, diz ele.

Pena de morte
A lei paquistanesa contra a blasfêmia ficou mais severa na década de 1980, em um cenário de crescente polarização no país.

Em 1979, o Paquistão era aliado dos americanos quando o vizinho Afeganistão foi invadido pela União Soviética e os Estados Unidos iniciaram operações secretas para ajudar combatentes islâmicos.

O país teve ganhos econômicos significativos por sua participação na jihad afegã, mas acabou impulsionando fanatismo religioso. Durante a década seguinte, a influência política e social dos grupos religiosos radicais aumentou dramaticamente.

Eles ganharam visibilidade e voz. O Estado promoveu abertamente a ideologia islâmica ultraconservadora Wahhabi, sob liderança do general Zia ul-Haq, presidente do país entre 1978 e 1988.

Leis foram promulgadas e adaptadas para reforçar a chamada sharia (legislação islâmica) e fazer do Paquistão uma nação “verdadeiramente islâmica”. Nesse contexto, as regras sobre blasfêmia foram alteradas pelo Parlamento em 1986.

Originalmente, uma legislação que respeitava diferenças religiosas havia sido criada pelos britânicos em 1860. O objetivo era conter conflitos religiosos entre hindus, muçulmanos, cristãos e siques em toda a Índia governada pelo Reino Unido na época.

A lei protegia locais de culto e objetos sagrados e tornava crime perturbar assembleias religiosas, invadir locais de sepultamento e insultar deliberadamente crenças de qualquer pessoa. Os infratores eram punidos com até dez anos de prisão.

Em 1927, durante uma tensão política e antagonismo entre diferentes comunidades, a lei foi reforçada.

As leis de blasfêmia não favoreciam nenhuma religião específica até 1986, quando o Parlamento paquistanês introduziu novas emendas e incluiu uma cláusula que punia com a morte quem ofendesse o profeta Maomé.

Na votação, apenas um parlamentar se posicionou contra a cláusula 295-C. Seu nome é Muhammad Hamza.

Hoje com 90 anos, Hamza conta como foi aquele dia em que a lei estava sendo discutida na Assembleia Nacional.

Em seu discurso em 1986, Hamza argumentou que os textos islâmicos citados pelos defensores da pena de morte precisavam ser exaustivamente revisados ​​pelos estudiosos da religião antes que qualquer mudança na lei fosse aprovada. Ele alegou que o Parlamento estava sendo irresponsável, evitando um debate mais profundo sobre o assunto.

“Tenho uma opinião firme”, diz Hamza. “Você não pode administrar o país com justiça seletiva. Qual é o propósito da lei se ela é destrutiva para a sociedade?”

“Nossa população não tem profundidade, é excessivamente emocional sobre religião, então eu sabia que a lei seria mal utilizada – é por isso que eu me opus”, completa.

Hamza era a única voz da oposição no Parlamento naquele dia – a cláusula 295-C foi aprovada imediatamente. Ele ainda vive em seu antigo distrito eleitoral, a cidade de Gojra.

Cristãos queimados vivos
Em 2009, no mesmo ano em que Asia foi presa, Gojra ganhou as manchetes internacionais depois de uma série de ataques que teve como alvo o maior assentamento cristão da cidade.

Provocada por rumores de que páginas do Alcorão haviam sido profanadas, uma multidão islâmica atacou e saqueou várias casas antes de incendiá-las. Oito cristãos foram queimados vivos.

“Foi um dia triste. As acusações eram totalmente infundadas, mas a multidão estava furiosa. As pessoas não prestavam atenção no que as autoridades estavam tentando lhes dizer e a situação ficou fora de controle”, conta o ex-parlamentar Muhammad Hamza.

Desde a introdução da pena de morte, o número de pessoas acusadas por blasfêmia vem aumentando massivamente, segundo o Centro Paquistanês de Justiça Social.

“Sinto-me desanimado com a forma com que a lei está sendo usada contra pessoas vulneráveis”, diz Hamza. “A religião se transformou em uma ferramenta política poderosa, não é mais uma bênção, tornou-se uma maldição, infelizmente.”

Conservadorismo nas escolas
Os críticos da lei acreditam que a violência contra os acusados ​​de blasfêmia se deve a uma má interpretação dos textos sagrados já a partir da infância.

No Paquistão, milhares de crianças são enviadas para madraças (escolas muçulmanas) e internatos islâmicos – uma alternativa gratuita à escola pública. Muitas dessas instituições ensinam uma profunda interpretação conservadora do Islã, incluindo uma constante retórica sobre a blasfêmia.

A vergonha de uma possível blasfêmia é tamanha que alguns religiosos chegam a se flagelar como punição.

Aos 16 anos, Muhammad Anwar era um típico adolescente. Ele vivia em uma pequena aldeia do distrito de Okara e, como outros jovens de sua idade, costumava ajudar seu pai na plantação.

Como é comum em muitas partes rurais do Paquistão com baixos níveis de alfabetização, o adolescente e sua família veem o clérigo local como a autoridade máxima em todos os assuntos religiosos.

Em janeiro de 2016, ele participava de um culto na mesquita da aldeia. O clérigo que liderava a celebração, em uma tentativa de criar um fervor religioso entre os fiéis, questionou: “Quem aqui é seguidor do profeta Maomé?”

Os fiéis levantaram as mãos enquanto Anwar estava cochilando. O clérigo continuou: “Quem aqui não acredita nos ensinamento de Maomé?”

O adolescente, meio adormecido, levantou a mão sem pensar.

A mesquita ficou em silêncio. Então o clérigo acusou publicamente o garoto de desonrar o profeta Maomé. Anwar ficou profundamente perturbado. Depois de todos os fiéis foram para casa, ele ficou atrás da mesquita, procurando um consolo.

“Eu queria provar meu amor a Maomé”, diz ele, sincero.

Como um ato de adoração a sua religião, o adolescente decidiu que o melhor a fazer era cortar sua própria mão. Ele colocou sua mão direita em uma máquina de cortar grama e decepou o membro em apenas um golpe.

“Não foi uma questão de dor. Fiz isso pelo amor ao meu profeta, que a paz esteja com ele”, conta.

Ele colocou a mão decepada em uma bandeja, cobriu com um pano branco e voltou para a mesquita em busca de absolvição do clérigo.

Nos dias que se seguiram, pessoas de vilarejos e cidades próximas foram até a vila de Anwar para prestar seus respeitos a ele, elogiando-o por seu amor ao profeta Maomé.

Dois anos depois, ele passa boa parte do tempo lendo o Alcorão em uma madraça local. Ele afirma que não se arrepende de ter amputado a própria mão. “Não me importo com o que as pessoas falam. Isso é entre mim e meu profeta. Você não vai entender”, diz.

Liberdade para Asia
O prédio em que fica o Supremo Tribunal de Lahore é mais alto que os outros adjacentes em uma movimentada avenida da cidade. Com seus tijolos vermelhos e altas colunas brancas, o edifício é uma lembrança do passado colonial do Paquistão.

Ao redor do Supremo Tribunal, ruelas estreitas acomodam muitos gabinetes de advogados, muitas vezes escritórios bem apertados.

Em uma praça atrás do tribunal, em frente a uma loja de chá movimentada, fica o escritório do advogado Ghulam Mustafa Chaudhry. Ele é presidente de um associação de advogados pró-lei da blasfêmia chamada Khayam-e-Nabuwat – em tradução livre, seria algo como “finalidade do profeta”. Eles oferecem aconselhamento jurídico a qualquer muçulmano que apresentar um caso de blasfêmia.

A associação tem cerca de 800 advogados voluntários por todo o Paquistão.

“Sempre que descobrimos qualquer incidente desse tipo [de blasfêmia] em qualquer lugar do país, procuramos os queixosos e oferecemos assistência jurídica gratuita”, explica Chaudhry.

“Nós fazemos isso para agradar Alá e proteger o profeta Maomé, não há motivação material”, diz.

Chaudhry criou a associação há quase 18 anos, logo depois de começar a trabalhar como advogado. Hoje com 50 anos, ele diz que está mais motivado que nunca em sua “missão”.

“É muito lamentável. A blasfêmia se tornou excessiva. Há 40 casos de blasfêmia em julgamento apenas na cidade de Lahore. As pessoas que cometem blasfêmia são celebradas como heróis, isso é muito triste.

Ele critica a forma como o caso de Asia Bibi se desenrolou. “Ela insultou o profeta Maomé, mas virou uma heroína no Ocidente.”

Chaudhry também era o advogado de defesa de Mumtaz Qadri, o antigo guarda-costas transformado em assassino do governador Salman Taseer. O advogado diz que a lei da blasfêmia é uma “bênção” e que ela impede que a população faça Justiça com as próprias mãos.

“Mumtaz Qadri procurou a polícia para apresentar uma queixa de blasfêmia contra o ex-governador, mas sua reclamação não foi acolhida”, diz o advogado. “Ele não teria sido forçado a pegar uma arma nas mãos se a lei tivesse sido seguida”, acrescentou.

O caso de Asia chegou até a corte máxima do país. Ela foi inocentada por falta de provas, mas, mesmo assim, os protestos violentos continuaram no Paquistão.

Ainda assim, o governo concordou que poderia haver uma revisão do julgamento da Suprema Corte sobre a absolvição de Asia. O governo queria dispersar os manifestantes, e depois acabou reprimindo o partido TLP, do líder religioso ultraconservador Khadim Hussain Rizvi.

Rizvi foi levado sob custódia pela polícia.

Já a família de Asia foi mantida em um local secreto por quase três meses. Ela foi absolvida, mas ainda não estava livre.

Finalmente, o Supremo Tribunal aceitou a petição de revisão em 29 de janeiro deste ano. O julgamento durou algumas horas. Ghulam Mustafa Chaudhry representou Qari Salim, o denunciante no caso de Asia.

O advogado não conseguiu demonstrar qualquer erro no veredito. O tribunal rejeitou a petição e reiterou sua decisão anterior de libertar Asia.

O presidente da corte disse que houve inconsistências nas declarações das testemunhas que depuseram contra Asia. “Como poderíamos enforcar alguém usando declarações falsas de testemunhas?”, questionou.

Asia deixou o Paquistão e foi para o Canadá, onde já estariam o marido e as duas filhas dela. Autoridades paquistanesas não confirmam, contudo, onde ela está nem quando embarcou. Eles também a mantiveram num lugar secreto enquanto negociavam a saída dela do país.

A decisão da Suprema Corte de anular a sentença em outubro passado levou a violentos protestos de religiosos que apoiam as severas leis de blasfêmia no Paquistão, enquanto setores mais liberais da sociedade pediam a libertação de Asia.
Em retrospectiva, é irônico como um caso baseado em declarações falsas tumultuou o tecido social do Paquistão por oito anos. Mas, finalmente, o governo mostrou sua força e o estado de direito prevaleceu.

Foi um momento decisivo para o Paquistão e a mensagem era clara: a justiça pelas próprias mãos não pode governar o país e a punição de morte por blasfêmia não deve ser permitida.

Apesar da mensagem, a lei ainda continua valendo e ninguém ainda se levantou para falar sobre revogá-la ou promover mudanças. O assassinato do governador Salman Taseer ainda assombra a mente dos paquistaneses.

 

 

Fonte: G1 por BBC ||https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/05/08/a-incrivel-jornada-de-asia-bibi-de-nove-anos-em-solitaria-por-blasfemia-a-vida-nova-no-canada.ghtml

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