Consumir pornografia pode até parecer um gesto inofensivo, só para entretenimento e prazer. Mas o consumidor desses conteúdos acaba contribuindo com uma indústria bilionária, que lucra com a exploração do papel da mulher e transmite a ideia de que aquilo é sexo. Ouvimos especialistas para entender como todos são afetados pelo pornô, vendou ou não esses conteúdos, e os reflexos desse hábito na sociedade, como a violência contra as mulheres.

No Brasil, 22 milhões de pessoas assumem consumir pornografia: 76% delas são homens e 24% mulheres. A maior parte desse público, 58%, é composta por jovens abaixo dos 35 anos. Os números foram divulgados pelo site Sexy Hot. O Pornhub é o site mais acessado no mundo. E durante a pandemia, as visualizações de filmes pornôs dispararam.

Na primeira quinzena de março, mês que marcou o início do isolamento social em várias cidades brasileiras, o número de pessoas que viram vídeos no Pornhub subiu 13% em relação ao começo de fevereiro. A média diária de acessos no Brasil aumentou desde então e, até meados de julho, o uso apenas desse site de pornografia já havia crescido quase 40%. A taxa de crescimento varia conforme o país, em maior ou menor escala, mas o aumento do consumo de pornografia foi geral.
Referência distorcida
Com conteúdos de fácil acesso pela internet e a falta de políticas públicas de educação sexual, a pornografia tem se tornado referência do que é sexo para crianças e adolescentes. O cenário é tão grave que alguns estados norte-americanos passaram a considerar a pornografia como uma questão de saúde pública. O País de Gales determinou que a educação sexual será disciplina obrigatória no currículo escolar a partir de 2022.

“A pornografia afeta o sexo em tudo. Eu sempre começo falando quando falamos que a indústria da moda, influencia a nossa roupa. Todo mundo concorda. Quando falo que a indústria do sexo influencia no nosso sexo, as pessoas falam ‘não’. Mas, os nossos padrões – o que é legal ou não no sexo foram moldados pela indústria pornográfica e uma sociedade pontificada que vivemos”, afirma Izabella Forzani, advogada e administradora da

página Recuse a Clicar, que tem como objetivo conscientizar sobre os efeitos da pornografia.

Reforço de padrões de beleza

A pornografia reforça padrões irreais de beleza: jovem, sem pelos, branca, magra, genitália rosada, seios grandes, ou seja, todas as simetrias estéticas que o público masculino deseja. “A pornografia não inventou, mas os reforça padrões de beleza a todo o tempo. E as pessoas que acabam saindo desse padrão acabam tendo a autoestima muito afetada se vende que aquele tipo de corpo é o corpo atraente. Quando você foge disso, é como se você sentisse que não fosse digno do outro te dar prazer”, diz Izabella Forzani. Para além disso, tudo é exótico e fetiche. Nesta lista estão as mulheres negras, gordas, asiáticas, lésbicas e por aí vai. 

Para os homens, a figura que representa masculinidade nas imagens também pode ser bem prejudicial: “A pornografia também trás um o padrão do corpo masculino irreal. O pênis de um homem pode ser problemático para eles. Homem que não inicia a vida sexual ativa por vergonha do pênis porque o pênis não corresponde ao que ele vê”, comenta.

A mulher objeto

Outro efeito devastador da pornografia é como ela objetifica a mulher. No roteiro de um filme pornô, a mulher na maioria absoluta dos casos só existe para dar prazer ao homem. É submissa, tem seus desejos ignorados, é violentada e infantilizada. Na lógica da educação sexual às avessas, a mulher também pode aprender com a pornografia a reproduzir performances e, muitas vezes, a fingir prazer dentro desse cenário violento. E nesse jogo de encenação, a mulher incorpora o papel de ser um objeto.


“Nós mulheres não aprendemos a desejar. Aprendemos a nos tornar desejáveis. E a gente sente prazer não pelo desejo que a gente tem pelo homem. Mas, pelo desejo que estamos provocando nele. Mulheres sentem prazer ao serem desejadas”, afirma a professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília, Valeska Zanello. “Mulheres aprendem a sentir prazer em serem consideradas objeto muito desejado. A auto objetificação e resultado desse processo”, acrescenta.

Professora emérita de sociologia, a inglesa Gail Dines pesquisa e escreve há mais de 25 anos sobre a indústria pornô. Ela diz que as mulheres não precisam assistir pornografia para serem profundamente afetadas por ela, já que as imagens, representações e mensagens de pornografia agora são entregues às mulheres até mesmo pela cultura pop.

Autora do livro “Pornland: como a pornografia sequestrou nossa sexualidade”, Gail afirma que a onda atual de imagens pornográficas softcore normalizou o visual da pornografia na cultura cotidiana a tal ponto que qualquer coisa menor parece desinteressante. Sendo assim, ela pontua que existem apenas dois lugares para as mulheres: “fodível” ou “invisível”.

O resultado disso é a auto-objetificação. E, nos tempos atuais, essa prática é glorificada e vista como “empoderadora”. “Sempre que me perguntam sobre essa possibilidade de se empoderar através da nudez eu percebo quanto o feminismo e o próprio termo empoderamento foram deslocados do seu caráter político e coletivo para poder caber dentro da perspectiva liberal e individualista. Não há empoderamento através da nudez, como não há empoderamento através de nenhum ato que altera apenas a realidade de um indivíduo e não de classe. Você se sentir melhor com o fato de que sua foto seminua ‘bombou’ no Instagram não altera em nada a realidade material das mulheres em geral, além de dar mais material para se manter a objetificação de corpos femininos.”

Sexo performático

Quantas vezes você já reproduziu posições desconfortáveis ou usou de agressividade como inspiração no sexo só por que viu em vídeo pornô? Agora, você já se perguntou e perguntou se aquela performance toda dá e proporciona prazer?

“O filme pornô ensina uma performance sexual que é péssima. O homem aprende a sentir prazer a gozar com a sua própria performance. O homem transa com a performance dele, é um monólogo narcísico. E a mulher finge muito para devolver o espelho de masculinidade dele para ele se sentir bom para ele continuar a desejando. E, normalmente, o que se ensina no filme pornô não proporciona prazer a mulher”, explica a psicóloga Valeska.

Izabella Forzani, administradora da página Recuse a Clicar ainda questiona: “Acho muito assintomático que hoje meninas adorem apanhar no sexo. Não estou aqui nem defendendo que sim nem que não. Só estou dizendo o quão natural é esse gosto. Será que é realmente natural? Ou será que são meninas e meninos que foram criados a partir de sexo violento que temos na pornografia. Acho muito inocente pensar que, do nada, todas as meninas do mundo passaram a gostar de apanhar.”

Sexo sem consentimento é estupro

“O pornô erotiza a ausência do consentimento feminino. É extremamente comum vídeos que mostram a ‘forçação’ de barra, simulações de estupro ou com homens que pressionam até a mulher ceder. Além disso tudo, ainda tem vídeos que mostram relações com mulheres drogadas, bêbadas, dormindo e, até mesmo, mortas”, comenta Izabella Forzani, do Recuse a Clicar.

Um artigo publicado no Journal on Sexual Exploitation and Violence em aponta que infinito fornecimento de novas imagens que podem ser clicadas em segundos fundiram os conceitos de sexo e violência. Pesquisas de filmes populares da pornografia descobriram que em 88% das cenas havia agressão verbal ou física, geralmente contra a mulher. Foi descoberto que 95% das vezes, quando alguém é violento com outra pessoa em pornografia.

Os bastidores do pornô

No início de 2020, o ator Ron Jeremy, um dos mais conhecidos da indústria pornográfica norte-americana, foi acusado formalmente de 20 casos de agressão sexual contra 12 mulheres e uma adolescente pela Promotoria de Los Angeles, nos Estados Unidos. Os crimes teriam ocorrido entre 2004 e 2019, com vítimas de idades entre 15 e 54 anos.

Matéria do Estado de Minas

COMPATILHAR: