Até 160 cidades em 23 estados aplicaram vacinas vencidas contra a Covid-19 na população, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde. Os microdados de vacinação compilados pela pasta apontam que 1.254 pessoas foram inoculadas com doses de lotes do imunizante da Oxford/AstraZeneca cuja data de expiração já tinha passado.

Segundo informações do portal Metrópole, Para chegar a informação, foi feito um cruzamento das informações oficiais sobre vacinas aplicadas com os registros de envios de imunizantes para as unidades da federação, onde constam a data de vencimento para cada lote.

O problema envolve as doses de três lotes de vacinas produzidas pela AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford fabricadas na Índia e importadas prontas pelo Brasil, os lotes 4120Z001, 4120Z004 e 4120Z005. São grupos de imunizantes cuja data de validade, de seis meses, já expirou.

Demora na liberação

A vinda dos primeiros lotes da vacina produzidos pelo instituto Serum, da Índia, sofreu com indefinições e idas e vindas. Ainda em 31 de dezembro do ano passado, a Fiocruz pediu e conseguiu autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importar 2 milhões de doses.

Duas semanas depois, no dia 14 de janeiro, o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, prometeu que um avião partiria do Brasil no mesmo dia para buscar as doses. A aeronave da empresa Azul foi adesivada pela equipe de marketing do governo, mas o voo acabou cancelado, e a Índia só liberou as vacinas na semana seguinte. Elas chegaram em 22 de janeiro, e começaram a ser distribuídas aos estados no dia seguinte.

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), responsável pela produção da Covishield no Brasil, apontou que os três lotes envolvidos vieram justamente nesse voo. Elas foram produzidas em outubro do ano passado no país asiático.

A validade

Segundo a bula da vacina no site da Anvisa, a validade do imunizante é de seis meses a partir da data de fabricação, e o produto não deve ser usado após o prazo previsto. “Não use medicamento com o prazo de validade vencido. Guarde-o em sua embalagem original”, diz o documento oficial.

De acordo com o registro no Ministério da Saúde, o lote 4120z001 foi autorizado para ser distribuído em 24 de fevereiro e vencia em 29 de março. A maior parte dos casos de aplicação de vacinas vencidas mapeados pela reportagem se refere a esse lote. Foram 869 casos identificados em cinco estados. Já os lotes 4120Z004 – com 108 casos em cinco estados – e 4120Z005 – 277 casos em 17 Unidades da Federação – foram autorizados em 22 de janeiro e venceram em 13 e 14 de abril, respectivamente.

Os dados oficiais registram a aplicação de vacinas até 21 dias após o vencimento.

“Erro de procedimento”

A epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o Programa Nacional de Imunização (PNI) do Ministério da Saúde entre 2011 e 2019, afirma em entrevista ao portal Metrópoles que a aplicação de vacinas fora da data de validade “é um erro de procedimento, cuja responsabilidade é de quem está na ponta: o município, a sala de vacina”.

Segundo ela, o sistema público tinha por norma não enviar aos entes federativos vacinas com menos de 3 meses de validade. “Numa situação especial, como agora, pode-se flexibilizar para um mês, mas precisa haver agilidade”.

“Não há autorização ou previsão para a aplicação fora da validade, as vencidas têm que ser desprezadas”, acrescentou. A especialista afirma ainda que há casos em que pode ser pedido à Anvisa a revalidação de datas de validade, mas que a decisão precisa ser baseada em critérios técnicos.

Procurada, a agência informou não ter recebido nenhum pedido nesse sentido e reforçou que “as condições de conservação, armazenamento e prazo de validade descritos em bula são baseados nos estudos de estabilidade e devem ser seguidos para garantir a qualidade de vacinas e medicamentos”.

O que pode acontecer

Ainda de acordo com a epidemiologista Carla Domingues, o problema da aplicação de vacinas vencidas é a possível perda de eficácia do princípio ativo. “Em princípio, um dia, dois dias, uma semana, não vai fazer diferença. Mas isso é teoricamente, e essa aplicação, se houve, não deixa de ser erro de procedimento, que não deve se repetir”, afirma ela.

Domingues afirmou ainda que, como no caso em que grávidas e crianças foram vacinados por engano contra a Covid-19, o indicado é que as autoridades acompanhem a saúde das pessoas durante algum tempo. “Por segurança. Em princípio, não há riscos à saúde, mas a chance de alguma perda de eficácia.”

Questionada sobre possíveis consequências de vacinas vencidas, a Fiocruz respondeu que podem ocorrer “eventos adversos, incluindo a inefetividade terapêutica”.

A Secretaria de Saúde do Maranhão apontou que, “nos estudos já realizados, os riscos da administração da vacina com prazo de validade vencido são a ocorrência de eventos considerados leves como dor e edema no local da aplicação, além da redução na eficácia da vacina”.

Reaplicação da vacina em Dracena

Uma das cidades em que os dados oficiais mostram a aplicação de doses vencidas é Dracena (SP), a cerca de 640 km da capital estadual.

Na sexta (23), o prefeito do município, André Lemos (Patriota), admitiu que 80 pessoas foram inoculadas com doses vencidas, todas do lote 4120Z001. Esse é o mesmo número identificado no cruzamento realizado pela reportagem. “As vacinas da AstraZeneca chegaram ao município com um prazo de validade muito curto, de aproximadamente 30 dias”, afirmou o chefe do Executivo local.

A cidade irá vacinar novamente as pessoas que receberam as doses desse lote após o vencimento.

“Incômodo dos usuários”

No fim de março, um vereador de Belo Horizonte fez um pedido de informações à prefeitura da capital mineira sobre a possibilidade de perda de doses da vacina Astrazeneca.

Wilsinho da Tabu (PP) informou que, “ao acompanhar a vacinação em alguns postos de saúde, observou o incômodo dos usuários ao perceber frascos fechados da vacina com a validade próxima de expirar”.

Ele citou os lotes 4120Z001 e 4120Z005 da AstraZeneca. Ainda não há registro de resposta da prefeitura ao parlamentar.

Respostas dos envolvidos

Procuradas, as secretarias de Saúde dos estados envolvidos deram respostas diversas. O governo do Paraná afirmou que o “problema está ocorrendo a nível nacional” e que aguarda a manifestação do Ministério da Saúde sobre a questão. Eles afirmaram ter entrado em contado com o Datasus na sexta-feira, 16 de abril, para tratar das vacinas vencidas.

Já Amazonas, Pernambuco, Santa Catarina e a prefeitura de Belo Horizonte, Teresina e Primavera do Leste (MT) afirmaram que não houve a vacinação com doses vencidas e que o problema seria um erro de digitação no sistema. Cada uma alegou um erro diferente apesar de usarem o mesmo sistema para registrar as doses de vacina.

A Superintendência de Vigilância em Saúde de SC apontou que o problema teria ocorrido no preenchimento do lote da vacina. Ao invés de colocar o lote 213VCD005W no sistema que registra as imunizações, a pessoa responsável por lançar os dados informou o lote 4120Z005. “Todas as doses do lote mencionado foram aplicadas ainda no mês de fevereiro”, apontou.

A informação do lote é inserida a partir de uma lista de todos os imunizantes recebidos pela cidade onde a pessoa está, não sendo assim necessário digitar o número do lote, e sim selecioná-lo na lista de opções. O lote informado pelo governo de Santa Catarina foi recebido em 7 de abril, de acordo com os registros do Ministério da Saúde.

A verificação foi feita, prosseguiu a superintendência, “em um registro paralelo” mantido pelo município de Chapecó, onde aconteceram todos os casos. Procurada, a prefeitura da cidade informou que os erros foram “registrados por diversas situações como: dose anterior não registrada, duas primeiras doses registradas, digitação de segunda dose no lugar de primeira”. Ao contrário da secretaria estadual, eles não citaram problemas no preenchimento do lote.

A Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas disse que “detectou o erro de digitação dos relatórios realizados pelas secretarias municipais de Saúde no estado e está entrando em contato para que os municípios corrijam a data junto ao Ministério da Saúde”. Apesar da resposta falar em situações no plural, a reportagem identificou apenas um caso no Amazonas. O estado não respondeu quando foi questionado sobre como foi feito o contato com os municípios e quais seriam as cidades contatadas.

Pernambuco, por sua vez, apontou que o erro de digitação aconteceu ao inserir a data de aplicação. Dos 43 casos encontrados no estado, 39 se referem a pessoas entre 60 e 64 anos cuja imunização foi anunciada no estado em 14 de abril com vacinas que chegariam no dia seguinte.

Um erro como esse poderia acontecer, por exemplo, quando o dado é lançado no sistema dias depois da vacinação ocorrer. Nesses casos, se a informação não for fornecida, o sistema pode presumir que a imunização ocorreu no dia em que a informação é lançada. No caso de Pernambuco, as datas de aplicação são diferentes das datas em que os dados foram inseridos no sistema em 37 situações, o que significa que o sistema não colocou automaticamente o dia em que as informações foram acrescentadas no sistema.

A prefeitura de Belo Horizonte disse que conferiu “os cartões de vacinação dos usuários e não houve aplicação de doses vencidas na população. O que ocorreu foi o efetivo lançamento no sistema do PNI após o prazo de vencimento da vacina. As aplicações foram feitas no dia 27 de março, data anterior ao vencimento do imunizante.” A cidade teve 77 casos identificados pela reportagem do Metrópole.

Assim, de acordo com a prefeitura da cidade, as aplicações foram feitas dois dias antes do vencimento da vacina, em 29/3. Entre os casos, há pessoas que foram identificadas como fazendo parte do grupo prioritário de 60 a 64 anos. Esse grupo começou a ser vacinado em 9/4 na capital mineira. Questionada sobre isso, a prefeitura disse que são profissionais de saúde, que já poderiam ser vacinados no fim de março.

Tocantins, São Paulo e Maranhão disseram que apenas repassam os lotes para os municípios e que uma eventual aplicação após o vencimento é de responsabilidade municipal. O Acre apenas negou o problema sem explicar o que pode ter acontecido. “Todas as vacinas dentro do prazo de validade”, disse a assessoria de imprensa.

As secretarias de Saúde que responderam apontando erros de digitação não informaram sobre outras informações que poderiam estar erradas no sistema. Assim, eles dizem respeito apenas aos três lotes de Covishield importados da Índia, que correspondem a 9,1% de todas as vacinas entregues aos estados.

As secretarias não apontaram qualquer erro em lotes com validade maior ou em aplicações da Coronavac, que é a vacina com mais doses aplicadas (83% do total no país).

Veja as cidades que aplicaram vacinas vencidas neste link.

Fonte: Metrópole

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