Com sucessivos rombos bilionários nas contas públicas, o presidente Michel Temer tenta aprovar uma reforma que fará com que a maioria dos brasileiros trabalhe mais e se aposente mais tarde.
Essa proposta é justa? O governo diz que sim, pois as mudanças sugeridas vão reduzir privilégios dos trabalhadores de maior renda, tornando a Previdência Social menos desigual.

Críticos da reforma, porém, consideram que o impacto sobre os segmentos com mais recursos ainda é limitado e apontam alterações que, por outro lado, vão restringir o acesso dos mais pobres à aposentadoria.

“Não tem nenhum esforço na reforma para tentar aumentar ou garantir a proteção (já existente) aos mais pobres. Só tem proposta de restrição. Temos que lembrar que a Previdência é no fundo uma política social”, afirma Marcelo Medeiros, pesquisador do Ipea e professor visitante da Universidade Yale, nos Estados Unidos.
Já o consultor legislativo Leonardo Rolim, que foi secretário da Previdência na gestão de Dilma Rousseff, elogia a proposta do atual governo.

“É uma reforma necessária, que foca nos privilégios e melhora ainda mais a redistributividade (de renda) da previdência”, diz.
Entenda melhor qual pode ser o impacto da reforma para diferentes grupos sociais, considerando as principais mudanças em discussão. Alguns pontos propostos pelo governo ainda estão em negociação no Congresso.

Submeter servidores ao teto dos trabalhadores privados

A Previdência do setor público paga em média benefícios muito maiores que a do setor privado (INSS), para uma quantidade bem menor de pessoas e acumula proporcionalmente um rombo muito maior.

No caso dos servidores federais, as aposentadoria e pensões de 982 mil pessoas (civis e militares) provocou um deficit em 2016 de R$ 77,2 bilhões. É mais da metade do saldo negativo do INSS (R$ 149,7 bilhões) – só que, nesse caso, são atendidos cerca de 27 milhões de aposentados e pensionistas.

Como a União usa recursos públicos para cobrir esses deficits, na prática há uma transferência de renda de toda a população para os servidores públicos inativos.
Dessa forma, uma das mudanças propostas na reforma busca reduzir o valor das aposentadorias dos servidores federais (exceto militares).

O objetivo é submeter os benefícios desse grupo ao teto do INSS (R$ 5.531,31), garantindo uma regra de transição aos mais velhos (homens acima de 50 anos e mulheres acima de 45).

Embora esse seja o teto, a maioria dos aposentados do setor privado recebe menos que isso – o piso do INSS é um salário mínimo (R$ 937) e o benefício médio não fica muito acima, está em R$ 1.287.

Já os servidores federais aposentados recebem valores mais altos. Segundo o Ministério do Planejamento, a média paga aos inativos do Poder Executivo em 2016 foi de R$ 7.620. Já o Poder Judiciário, pagou em média R$ 22.245, enquanto os aposentados do Poder Legislativo receberam em média R$ 28.593.

“É positivo unificar o sistema quando tem privilégio num grupo. Nesse caso, como você não pode dar a aposentadoria do funcionário público para todo mundo, você vai trazer os funcionários públicos para a aposentadoria do setor privado”, afirma Medeiros.
Para o professor, porém, o grande problema são os servidores que ficaram de fora dessa mudança – estaduais, municipais e militares. Como esses grupos também têm renda maior que a média nacional, Medeiros diz que o governo está sendo complacente com setores relativamente mais ricos.

Os servidores estaduais do país, por exemplo, tinham aposentadoria média de R$ 5 mil em 2015, de acordo com levantamento do Ipea. Segundo o Ministério da Fazenda, a previdência dos estados somou rombo de R$ 89,6 bilhões em 2016.

Já os militares, que têm um regime especial com alíquotas menores de contribuição, receberam aposentadoria média de R$ 9.664 no ano passado. Naquele ano, a previdência desse grupo registrou déficit de R$ 34,1 bilhões.

Segundo Leonardo Rolim, a previdência dos militares pode ser alterada por projeto de lei comum, o que exige menos votos que uma PEC (proposta de emenda constitucional). Por isso, ele considera que faz todo sentido tratar esse grupo separadamente, afastando a pressão dos militares sobre a discussão da reforma mais ampla, que exige alteração da Constituição.

A promessa do governo é, após aprovar a PEC, elaborar uma reforma para os militares “mais próxima possível” das regras propostas para o resto da população, segundo disse nesta segunda o ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira.
Já os servidores estaduais e municipais estavam originalmente na reforma encaminhada ao Congresso, mas foram retirados devido ao medo de que a pressão dessas categorias impedisse a aprovação da proposta.

Para forçar Estados e municípios a fazerem suas próprias reformas, o governo pretende incluir na PEC um prazo de seis meses para que alterem suas regras da previdência, do contrário, seus servidores serão automaticamente incluídos nas regras dos servidores federais.
Para Medeiros, a decisão de tirar Estado e municípios da proposta é uma “irresponsabilidade” que vai criar exigência de “mais cinco mil reformas no país”.

Rolim acredita que a tendência será os governos estaduais e municipais não fazerem nada, se submetendo às regras federais.

Exigência de idade mínima de 65 anos

Atualmente, a maioria dos brasileiros pode se aposentar de duas formas: cumprindo um tempo mínimo de contribuição (30 anos para mulheres e 35 anos para homens); ou contribuindo por ao menos 15 anos e alcançando uma idade mínima (60 anos para mulheres e 65 anos para homens).

A proposta do governo prevê que todos só poderão se aposentar após os 65 anos e com contribuição mínima de 25 anos.
A fixação de uma idade mínima é item considerado fundamental no governo, sob o argumento de que essa mudança impacta justamente pessoas de maior renda, reduzindo privilégios.

Isso porque pessoas muito pobres já se aposentam por idade hoje. Esses trabalhadores, em geral, atuam no mercado informal e por isso, mesmo começando muito cedo a trabalhar, não conseguem contribuir por 30 ou 35 anos.
Já pessoas de maior renda têm mais estabilidade profissional e acabam conseguindo se aposentar mais cedo. Em média, quem se aposenta por tempo de contribuição pelo INSS, o faz com 54,7 anos, ganhando R$ 2.412,70. Já quem se aposenta por idade recebe em média menos que a metade, R$ 1.136,05.
No caso dos servidores públicos federais, a média da aposentadoria está em 60,7 anos.
Dessa forma, há um certo consenso entre economistas de que elevar a idade mínima para 65 afeta mais grupos de maior renda.

Tempo mínimo de contribuição de 25 anos

Por outro lado, críticos da reforma consideram que elevar a exigência de tempo mínimo de contribuição de 15 para 25 anos vai dificultar a aposentadoria dos mais pobres.

São justamente os trabalhadores de menor renda que sofrem com maior rotatividade no mercado de trabalho e tem maior dificuldade de encontrar empregos com carteira assinada, ressalta a economista do Dieese Fátima Guerra.
Segundo dados do INSS, apenas um quinto dos trabalhadores que se aposentam atualmente por idade contribuíram por ao menos 25 anos.

“Os mais pobres não vão conseguir atingir o tempo mínimo, ainda mais as mulheres, já que muitas param de trabalhar por um tempo para cuidar dos filhos. Esse é o principal indicador de que a reforma proposta pelo governo aperta no andar de baixo”, diz a economista.
Medeiros também considera a mudança muito negativa para os mais pobres e defende que deveria haver uma gradação no tempo de contribuição exigido de acordo com o valor do benefícios (quanto maior a aposentadoria, mais tempo de contribuição).

“O governo está agindo de maneira incoerente. Restringindo o acesso a aposentadoria para os mais pobres, mas concedendo vantagens para grupos que não estão na base da pirâmide (parte dos servidores que ficou de fora da PEC). Deveria fazer o contrário”, crítica.
Já Rolim defende o aumento do tempo mínimo de contribuição. Para o consultor legislativo, é importante aumentar essa exigência justamente para desestimular a informalidade.

Segundo ele, ao manter o piso do INSS atrelado ao salário mínimo, a reforma mantém um importante instrumento de distribuição de renda aos mais pobres – como esse grupo contribui com pouco, o salário mínimo garante um retorno proporcionalmente alto.

Mudanças no BPC (assistência a idosos pobres)

Outra alteração proposta que tem impacto direto sobre os mais pobres é elevar a idade mínima exigida para acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), de 65 anos para 70, critica Medeiros.

O BPC hoje garante um salário-mínimo a idosos que comprovem não possuir meios de se sustentar. Pela proposta, o benefício também será desatrelado do piso nacional, deixando de ser reajustado automaticamente.
“Para essas pessoas que não contribuíram ao longo da vida, esse benefício é a garantia da não pobreza na velhice”, ressalta Fátima Guerra.
A proposta tem sido muito criticada e o governo aceitou negociar. Uma alternativa em discussão é permitir que o benefício seja adquirido a partir dos 65 anos, mas o valor seria de apenas 70% do salário mínimo. Já para receber 100% do piso nacional, teria que solicitar apenas após 70 anos.

Rolim diz que é preciso haver diferenças entre as exigências para aposentadoria e os requisitos para o BPC, para que não ocorra um desestímulo à contribuição para o INSS.

“O benefício assistencial não pode ser igual ao contributivo. Se você olhar mundo afora, não tem um lugar que seja igual”, disse.
Segundo o governo, as despesas da União com BPC mais que triplicaram desde 2003, chegando a R$ 49 bilhões em 2016, devido a decisões judiciais que têm concedido o benefício a pessoas que não são extremamente pobres, o que estaria desvirtuando o BPC.

 

Fonte: BBC ||

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