As prisões brasileiras seguem superlotadas. E o déficit de vagas impressiona. Mas um levantamento exclusivo do portal G1 mostra que a superlotação diminuiu no país e o percentual de provisórios caiu, atingindo o menor patamar dos últimos anos. Os dados, do Monitor da Violência, têm como base informações oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal.

Desde a última reportagem do G1, publicada em abril de 2019, foram criadas 7.429 vagas, número maior que o acréscimo de presos (5.845 internos a mais).

Há hoje 710 mil presos para uma capacidade total de 423 mil, um déficit de 287 mil vagas no Brasil – menor que o do último levantamento. O total não considera os presos em regime aberto e os que estão em carceragens de delegacias da Polícia Civil.

Os presos provisórios (sem julgamento), que chegaram a representar 35,9% da massa carcerária há cerca de um ano, agora correspondem a 31%. É o menor percentual desde que o G1 começou a coletar sistematicamente esse dado, em 2015.

Os dados foram levantados pelo G1 via assessorias de imprensa das secretarias de Administração Penitenciária e por meio da Lei de Acesso à Informação e são os mais atualizados disponíveis.
O último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do governo, divulgado na semana passada, é referente a junho de 2019. Os dados são muito similares; a diferença está na queda expressiva no número de provisórios, verificada neste início de 2020.


Se forem contabilizados os sentenciados em regime aberto e os que estão sob responsabilidade da Polícia Civil, o número de presos hoje no Brasil chega a 756 mil.

Levantamento do G1 aponta que a proporção de presos provisórios diminuiu no país, mas que todos os estados do país seguem superlotados — Foto: Juliane Monteiro/G1


• INFOGRÁFICO: Mapa mostra raio X do sistema prisional
• ANÁLISE DO FBSP: Os dados sobre o sistema prisional e suas dissonâncias
• ANÁLISE DO NEV-USP: Redução de provisórios é boa notícia em quadro penitenciário dramático
• METODOLOGIA: Monitor da Violência
Em comparação aos dados colhidos pelo G1 em 2019, o novo levantamento revela que:
• o número de vagas criadas foi maior, pela 1ª vez, que o número de novos presos
• apesar da queda no déficit de vagas, ainda faltam hoje 287 mil lugares nas cadeias
• a superlotação caiu: de 69,3% para 67,8%
• Roraima é agora o estado com a maior superlotação; no ano passado, era Pernambuco
• o percentual de presos provisórios foi de 35,9% para 31%
• Ceará se manteve como o estado com a maior proporção de provisórios

Proporção de presos provisórios é a menor dos últimos anos no país, aponta levantamento do G1 — Foto: Juliane Monteiro/G1


O Monitor da Violência, criado em 2017, é resultado de uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O G1, no entanto, faz levantamentos sobre a situação do sistema penitenciário brasileiro desde 2014. Desde o ano passado, para que seja possível fazer uma comparação também com o Infopen, é pedido o número de presos que cumprem o regime aberto e que não demandam vagas no sistema. Também é solicitado às secretarias de Segurança Pública o dado de presos em carceragens ou delegacias de polícia.

Neste ano, o único estado que não passou as informações completas foi Goiás. O estado divulgou apenas o total de presos e o de vagas. Por isso, o dado de provisórios foi calculado sem essa unidade da federação. É a primeira vez que um estado se recusa a passar os dados do sistema penitenciário.

Presos provisórios: audiências de custódia

Um dos dados mais reveladores do novo levantamento diz respeito aos presos provisórios. É um percentual ainda alto: 31% – isto é, quase um em cada três presos está atrás das grades sem ter sido condenado ainda. Ainda assim, é o menor dos últimos anos.

Para fazer o cálculo, o G1 considera todos os presos que ocupam vagas no sistema penitenciário, seja no regime semiaberto ou fechado. Os presos em regime aberto não entram na conta.

O juiz e conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Mário Guerreiro, supervisor do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas, afirma que a realização de audiências de custódia é o principal fator para a redução no número de presos provisórios.
“Esse dado não é uma surpresa. Ele coincide com políticas públicas (como as audiências de custódia) estabelecidas a partir de 2015 e que estão gerando reflexo agora”, diz Mário Guerreiro, do CNJ.

Segundo o CNJ, em 2019 foram realizadas no país 220,2 mil audiências de custódia, sendo que em 88,4 mil delas o resultado foi a liberdade provisória. O número pode ser ainda maior, já que o CNJ diz que oito tribunais do país não preencheram corretamente o sistema durante todo o ano.

Guerreiro aponta ainda que a monitoração eletrônica também tem sido fundamental para reduzir o número de provisórios ocupando vagas no sistema penitenciário.

O estado com o maior percentual de provisórios, mais uma vez, é o Ceará. É o único do país com mais da metade (54,3%) dos presos sem condenação.

O defensor público Manfredo Rommel diz que o problema é que, no estado, a “prisão é a regra, não a exceção”. Segundo ele, há pouca aplicação de medidas cautelares.

“A família me procura e, quando vou ver o processo, é uma aberração devido a tanto tempo que está esperando. Muitas pessoas que estão presas podiam responder ao processo em liberdade, com outras medidas, dependendo da capacidade resolutiva do juiz”, diz defensor público Manfredo Rommel.

Para Ruth Leite, advogada da Pastoral Carcerária, a alta quantidade de presos provisórios é a maior “chaga” do sistema prisional. “É impossível funcionar com esses milhares de provisórios. O mutirão nunca vai ser suficiente. Sempre vai ser pouco, porque é preciso ser uma política permanente. É preciso investir mais nas medidas cautelares.”

O secretário da Administração Penitenciária do Ceará, Luís Mauro Albuquerque, diz que a pasta vem adotando políticas para resolver a questão. Segundo ele, houve no último ano um aumento no número de presos apresentados sem julgamento à Justiça. “Além de esse preso não ser mais provisório, fica com a condenação definida. Com essa definição da situação, muitos progrediram de regime, muitos foram colocados com tornozeleira. Em um ano, baixou muito o número de presos provisórios”, afirma.

Superlotação: problema nacional

Todas as 27 unidades da federação seguem com superlotação no sistema. A média geral do país é de 67,8% acima da capacidade – 1,5 ponto percentual menor que a auferida no ano passado.

O levantamento mostra ainda que há hoje 48.587 vagas em construção no Brasil – o que não é suficiente para cobrir nem 1/5 do déficit atual.

Para Bruno Paes Manso e Giane Silvestre, do NEV-USP, o país segue insistindo no encarceramento como principal forma de controle da criminalidade, “num modelo ineficaz, insalubre e que, em muitos casos, mais aumenta episódios de violência do que os diminui”. “Nas prisões superlotadas, com funcionários insuficientes para administrar o dia a dia dos raios, a autogestão dos presos acaba estabelecendo a ordem interna. Mais um fator que fortalece as organizações criminosas.”

O estado que tem o sistema mais superlotado do país é Roraima. São 706 vagas para 2.932 presos – uma superlotação de 315,3% (a maior já registrada desde que o G1 passou a fazer esse tipo de levantamento).

No ano passado, duas cadeias no estado foram fechadas – uma delas para reforma – e os presos dessas unidades foram transferidos para alas já lotadas na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo. O presídio está em obras. Com isso, desde junho de 2019 o presídio só funciona de um lado: são 154 celas com 7 alas para comportar todos os internos.

Familiares de presos relatam que a situação saiu do controle no estado. Uma técnica em enfermagem de 51 anos diz que o marido, que está preso há três anos, reclama da falta de espaço e da alimentação e diz que tem dormido no chão há mais de um ano. “Ele está todo cheio de coceira, pelo corpo todo, roupa toda rasgada, velha. A gente nunca tinha visto nossos familiares nessa situação.”
“Eu nunca tinha visto uma situação tão caótica como está agora. Nós passamos sete meses sem visitá-los depois que começou a intervenção. E, quando a gente chegou lá, eles estavam doentes, se queixando tanto de maus-tratos psicológicos como físicos por parte dos agentes.”

“Em cela que é para comportar três detentos tem 15, tem 25. Meu marido me fala que os pés estão ficando atrofiados porque ele não consegue nem andar. Ele está numa cela pequena com 68 presos”, diz técnica de enfermagem sobre marido preso em RR.

A técnica em enfermagem diz que, nas visitas, o mau cheiro incomoda. “Eles não têm sabonete. Não têm como lavar a roupa. E reclamam muito do calor, porque ficam encostados um no outro. Dormem até dentro do banheiro.”

Uma autônoma de 41 anos, mãe de um detento de 21, também diz que o filho está numa cela sem nenhuma condição.

“Ele sempre comenta que um dorme em cima do outro. Dormem três [presos] em cima de uma pedra que era para ser cama. E ele tem uma única roupa, que é uma bermuda. Não tem kit de higiene. E emagreceu bastante, acho que perdeu uns 4kg. É desnutrição total, até sem água eles ficam”, diz mãe de detento sobre a situação do filho.

No início deste ano, uma doença acometeu vários presos. Fotografias deles com a pele corroída por muitas feridas repercutiram e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos cobrou uma investigação.

O presidente da OAB-RR, Ednaldo Vidal, diz que o problema é que no sistema penitenciário de Roraima não há vagas. “Não tem como fazer milagre, porque não tem onde se colocar. Enquanto não se construir a ala B, o presídio de segurança máxima, o presídio de Rorainópolis, não há solução.”

“Há um alto índice de criminalidade. Mas há também uma justiça criminal duríssima, que em muitos casos encarcera réus primários, com bons antecedentes, com residência fixa, que podem responder ao processo mediante medidas cautelares”, afirma Ednaldo Vidal, presidente da OAB-RR.
Nesta segunda (17), a Justiça determinou a interdição parcial da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo para que o presídio não ultrapasse mais de 2 mil internos e concedeu prisão domiciliar a presos do regime semiaberto.

O governo de Roraima diz que há cinco obras em andamento para solucionar o problema no estado. “Mesmo com os indicadores de superlotação no sistema prisional, os investimentos que estão sendo feitos na infraestrutura vão resultar no fim do déficit de vagas nas prisões do estado. Mas, para que isso ocorra, foi necessário o remanejamento de detentos para que fossem promovidas melhorias na estrutura física, de forma segura e responsável. Além disso, não foram registradas fugas ou mortes violentas, e hoje o sistema prisional se encontra sob controle.”

Política de encarceramento em massa

O Amazonas, que chegou a figurar como o estado mais superlotado do país em 2017, voltou a registrar um aumento em 2020. Os dados revelam que há uma superlotação de 171,4%.

A Defensoria Pública do Amazonas afirma que o aumento do número de presos nas últimas décadas “decorre da rígida política criminal de repressão ao tráfico de drogas, pois mesmo os pequenos traficantes, que não oferecem risco real à segurança pública, são presos provisoriamente, em regime equivalente ao fechado, quase que de forma automática, sem uma análise concreta da possibilidade de utilização das medidas cautelares diversas da prisão”.

O órgão também afirma que um dos motivos para a superlotação é a ausência de unidades prisionais no interior do estado. “Por isso, atualmente 520 presos do interior foram transferidos para a capital, sendo que esses presos acabam sendo ‘esquecidos’ pelo juízo da comarca de origem.”

Entre os casos de violação encontrados nas prisões do estado, a Defensoria destaca os seguintes como sendo os mais comuns:

• presos provisórios há vários anos sem oferecimento de denúncia
• prazos vencidos para a progressão do regime
• cumprimento de pena em regime mais grave que o fixado na sentença
Já sobre os presos provisórios, a Defensoria afirma que “o próprio Código de Processo Penal prevê medidas cautelares diversas da prisão, mas, como dito, ainda há uma política criminal de encarceramento em massa em relação aos delitos de tráfico de drogas”.

O secretário de Administração Penitenciária do estado, coronel Vinicius Almeida, contesta a inclusão dos presos do regime semiaberto no levantamento do G1. “A partir do momento em que o estado entende que o melhor modelo é colocar tornozeleira eletrônica e que [o preso] fique em casa, eu não posso computar isso como vaga porque não tem cela para ele”, afirma.

“Nós temos, sim, uma quantidade de internos acima da capacidade da unidade. Isso não é um privilégio do Amazonas. É uma realidade nacional. Mas dizer que o Amazonas é o segundo maior em superlotado não está correto porque não é”, diz o secretário.

Ele cita ações tomadas pelo governo para melhorar a situação nas prisões do estado. “Várias medidas foram adotadas para evitar novos massacres, uma delas foi que o governo instalou um gabinete de crise. Chamou vários órgãos, participou o Ministério Público, participaram OAB, Defensoria, tribunal. Todos foram convocados e fizemos uma grande ação baseada nos nossos dados de inteligência e acredito que estamos tendo sucesso.”

Pernambuco, que esteve esteve na primeira posição em quase todos os levantamentos feitos pelo G1 desde 2014 (com a exceção do de 2017), hoje aparece em terceiro lugar. O sistema está 143,2% acima da capacidade.

O governo diz que a superlotação caiu por conta do aumento da capacidade do sistema. “De 2015 a 2019, foram criadas 2.478 novas vagas no sistema prisional de Pernambuco. (…) Outras 4.794 vagas devem ser criadas até o fim de 2022”, afirma, em nota.

O estado, porém, continua com uma situação crítica. No começo deste ano, brigas em um presídio de Recife deixaram cinco feridos e um morto. Em outra unidade prisional, a morte de um detento por meningite acendeu um alerta no sistema prisional.

Presos em delegacias

Outro número de destaque é o de presos em carceragens de delegacias. São pouco mais de 9 mil. No último levantamento, eram 16 mil.

O dado vem caindo em todos os estados. No Ceará, a Secretaria da Segurança diz que em 2019 foi iniciado um processo de desativação dos xadrezes nas delegacias. Em Fortaleza, todas as delegacias não plantonistas (16 unidades) tiveram as celas retiradas. No interior, foram fechadas 102 cadeias. Hoje há pouco mais de 100 presos nesses locais.

O Paraná, que tinha 11 mil presos em delegacias no ano passado, também reduziu esse contingente à metade. São 5,5 mil atualmente.

O Departamento Penitenciário do estado afirma que tem realizado diversas ações para reduzir o número de presos em carceragens.
Uma das ações foi a transferência da administração de 37 carceragens de delegacias da Polícia Civil para o sistema prisional do estado. “Com isso, cerca de 6 mil detentos passaram a ter as mesmas condições de custódia fornecidas em todo o sistema prisional, e mais de mil policiais civis foram liberados exclusivamente para o trabalho de investigação, formalização de flagrantes e demais atividades de prestação de serviços à população.”

O departamento também afirma que o estado busca, junto ao Poder Judiciário, promover e ampliar sempre o número de mutirões carcerários, com o intuito de revisar e analisar os processos de presos que, eventualmente, já possuam direito a progressão de pena ou outro benefício, diminuindo o número de detentos nesses espaços destinados à custódia provisória.

Em 2019, foram analisados 11.313 processos de execução penal em mutirões carcerários em todo o estado, o que resultou em 6.495 benefícios concedidos. Dentre as progressões de regime, 903 presos receberam alvarás de soltura e outros 1.895 passaram ao regime semiaberto harmonizado — ou seja, com o uso de tornozeleira eletrônica.
No Amazonas, há 1,1 mil presos em delegacias. Os presos estão nos locais porque não há unidades prisionais na maioria dos municípios do estado. O número, porém, vem caindo e a intenção do governo é que, em breve, todos migrem para o sistema penitenciário.
Em alguns estados, o número de presos em carceragens varia dia a dia, mas não é mais representativo.

Políticas públicas e criação de vagas

O Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, afirma que a diminuição da quantidade de presos provisórios no país ocorreu devido ao esforço conjunto de todos os envolvidos na execução penal, como o próprio Ministério da Justiça, o poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública.

Como exemplo, o órgão cita a ação “Defensoria Sem Fronteiras”, que analisou 8.735 processos no Pará, concedendo progressões de regime e pedidos de liberdade provisória e de revogação de prisão.
O Depen também afirma que “o sistema prisional do Brasil há anos está com problemas com a superlotação”, mas que pretende apoiar a criação de mais de 20 mil vagas em 2020.

O órgão diz ainda que “continua trabalhando na elaboração de políticas públicas que contribuam diretamente com a redução da população prisional, fundamentalmente, por meio dos investimentos e ações desenvolvidas junto aos estados, que geram impactos não apenas na condição de dignidade da pessoa em privação de liberdade, mas a partir do momento em que essa pessoa se torna egressa do sistema prisional”. “Essas ações impactam diretamente a redução da reincidência criminal e consequentemente, a redução da superlotação carcerária.”

Participaram desta etapa do projeto:

Coordenação: Thiago Reis
Dados e edição: Clara Velasco, Gabriela Caesar e Thiago Reis
Produção e reportagem: Carolina Diniz, Clara Velasco, Emanuela Campelo de Melo, Gabriela Caesar, Milena Teixeira, Thiago Reis e Valéria Oliveira
Edição de imagens (vídeo): Henrique Pinheiro
Edição (infografia): Rodrigo Cunha
Design: Amanda Georgia Paes, Aparecido Gonçalves, Betta Jaworski e Juliane Monteiro

 

Fonte: G1 ||
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