Nos últimos dias, a internet brasileira parece ter se tornado um asilo. Do dia para a noite, várias pessoas passaram a postar selfies com suas versões idosas.  A tecnologia por trás da brincadeira é o FaceApp um aplicativo que soa inocente, mas pode ser extremamente invasivo em relação à privacidade.

Se uma empresa apresentasse três endereços diferentes – um na Rússia, outro nos Estados Unidos e um terceiro no Panamá – e tentasse prestar algum serviço para você usando um contrato do tipo “receita de bolo de internet”, você pensaria duas vezes em realizar alguma atividade com essa empresa?

Pelo menos 100 milhões de pessoas que baixaram o “FaceApp”, o aplicativo que envelhece o resto e que virou febre até entre os famosos, decidiram aceitar esse risco.

 

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Envelhecer como meus ídolos

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Não existe qualquer suspeita de que o “FaceApp” represente algum perigo para quem o utilizou. Mas a velocidade com que um pequeno aplicativo desconhecido e engraçado conquista milhões de downloads acaba deixando nosso bom senso em segundo lugar. Pior do que correr um risco é correr o risco sem ter ciência de que ele existe.

E é assim, querendo participar da brincadeira, que muita gente deixa de fazer perguntas simples, como “de onde veio isso?”

No caso do FaceApp, ele foi desenvolvido por uma empresa russa chamada Wireless Lab. Mas você não saberia disso olhando a listagem do aplicativo no Google Play: lá, ele alega ser produto da “FaceApp, Inc”, uma empresa norte-americana sediada no estado de Delaware.

Esse local em Delaware pertence a um “escritório virtual” – um endereço que empresas podem comprar para receber correspondências e ter direito a um atendente telefônico em local geográfico privilegiado. Fica a dúvida, portanto, se realmente existe algum funcionário da criadora do aplicativo por lá.

Todos os sites na web têm informação de registro, incluindo endereço, e-mail e, às vezes, telefone. O site “faceapp.com” está registrado para um endereço no Panamá de um serviço destinado a ocultar as informações verídicas nesse registro obrigatório.

Isso significa que é um endereço declaradamente “falso”, um “testa de ferro”. Esse é um serviço válido para pessoas físicas e pequenos negócios locais  –  assim como você talvez não queira constar no telefone 102 ou em listas telefônicas -, mas é um pouco suspeito para empresas que querem credibilidade na internet.

O terceiro endereço fica na Rússia, na cidade de São Petersburgo, e aparece nos “termos de uso” do serviço. O nome “Wireless Lab” também surge nesse documento, bem como na App Store, da Apple. Esse é o endereço informado para questões judiciais e, portanto, o que tem mais chances de ser o verdadeiro.

Porém, esse contrato de termos – assim como o “acordo de privacidade”, que explica quais informações o aplicativo coleta e como elas são utilizadas – não foram escritos especificamente para o FaceApp. Praticamente todos os trechos são cópia de outros contratos existentes na internet.

Ou seja, os criadores do aplicativo podem ter adaptado uma “receita” ou usado algum “gerador de contrato”. A veracidade de um texto assim é bastante questionável, mas também pode ser uma medida para uma empresa pequena cortar custos.

Embora esses pontos sejam suspeitos, nada disso teve o intuito de enganar os usuários, mas sim de proteger a empresa. Ao menos, é que tudo indica.

O smartphone é hoje nosso “santuário” digital: tem nossas fotos, e-mails, senhas, até o token do acesso ao banco. No mesmo aparelho, instalamos jogos e brincadeiras, como o FaceApp. Essa mistura é perigosa.

Essas atividades têm um apelo muito forte e são os atrativos preferidos dos golpistas porque a diversão e o humor sempre nos convidam a baixar a guarda.

É graças à ação do Google e da Apple, que filtram os aplicativos presentes em suas lojas (a Play Store e a App Store, respectivamente), que podemos instalar esses apps com alguma garantia de segurança. Mas a chance de algo ruim passar por esses filtros sempre existe (como o Google, em especial, tem demonstrado centenas de vezes só em 2019).

Na avaliação de especialistas consultados pelo portal TAB, a política de privacidade do serviço é um tanto problemática.

Para Dennys Antonialli, diretor-presidente do Internet Lab, ONG que promove debates em direito e tecnologia, “o FaceApp tem uma política de privacidade bastante genérica, dando a possibilidade de coletar e usar não somente as fotos dos usuários, mas também outras informações sensíveis, como identificadores de seu aparelho celular, endereço de e-mail e dados de localização”.

Para Joana Varón, diretora executiva da Coding Rights, organização de defesa de direitos humanos na internet, a política de privacidade do FaceApp é muito permissiva. “Eles afirmam que sua informação pode ser compartilhada com serviços e negócios que são parte do mesmo grupo do FaceApp ou ainda com afiliados [sem dizer quem seriam os afiliados]. Ou seja: o uso vai muito além da empresa dona do aplicativo”, comenta.

A companhia afirma que os dados do usuário podem ser usados para oferecer “informação e conteúdo personalizado para você e para outros, incluindo anúncios e outras formas de marketing”, melhorar e testar a eficiência do serviço, reconhecer padrões demográficos, entre outros.

O serviço ainda afirma que “as informações coletadas podem ser guardadas e processadas nos Estados Unidos ou em qualquer outro país que o FaceApp e seus afiliados ou provedores de serviço tenham instalações”.

O FaceApp viola as leis brasileiras?

Varón acredita que o aplicativo viola o Marco Civil da Internet. “Você está cedendo sua imagem para um determinado fim: brincar com sua foto. Mas as políticas de privacidade do FaceApp deixam claro que não é isso. As imagens estão sendo arquivadas e processadas para diferentes fins, o que é ilegal no Brasil”, diz.

A Lei Geral da Proteção de dados, aprovada em 2018 e que só entrará em vigor em agosto de 2020, também entraria em conflito com o aplicativo. “A lei estabelece alguns princípios que devem nortear as atividades de coleta e tratamento de dados pessoais, como finalidade, adequação, necessidade e transparência, princípios esses que não são compatíveis com políticas tão amplas e genéricas como a do FaceApp.

Isso também poderia afetar o consentimento do usuário, que precisa ser oferecido com base em finalidades específicas, e não genéricas.”, explica Antonialli.  “De todo modo, o direito à privacidade está garantido pela Constituição Federal e práticas que o violem podem ser objeto de questionamento, inclusive judicial”, conclui.

Como o FaceApp pode fomentar políticas de vigilância

Pequenas empresas que surgem coletando dados podem ser muito mais perigosas do que as grandes. “Tem mais gente se preocupando com o Facebook do que esses pequenos aplicativos que viralizam”, diz Varón.

Embora práticas questionáveis de respeito à privacidade não sejam exclusividade do FaceApp, a coleta e utilização das fotos dos usuários gera preocupações adicionais. “Especialmente em um contexto em que as tecnologias de reconhecimento facial estão sendo largamente aprimoradas”, ressalta Antonialli.

A selfie que você tira pode ser usada principalmente para alimentar bancos de dados usados para treinar câmeras de reconhecimento facial.

Essa é uma tecnologia que está sendo criticada tanto pelo estado de vigilância constante que cria quanto por, muitas vezes, funcionar de forma enviesada. “No mundo todas as nossas imagens estão sendo utilizadas para treinar essas bases de dados sem nosso consentimento. E estamos treinando tecnologias que podem nos discriminar, limitar acesso a direitos, políticas”, comenta Varón.

No MIT, a pesquisadora Joy Buolamwini, analisou os sistemas de reconhecimento facial da Microsoft, Facebook e IBM e notou que os sistemas funcionavam melhor com homens e brancos. Na análise de erro da Microsoft, por exemplo, percebeu que o sistema errava o gênero 93,6% das vezes quando os rostos eram negros.

Há dois anos, por exemplo, o FaceApp foi acusado de ter um filtro racista. Ao prometer deixar a pessoa mais sensual, ele clareava a pele do usuário.

Na última semana, no Rio de Janeiro, uma mulher foi conduzida à delegacia porque uma câmera de reconhecimento facial a confundiu com uma suspeita de crimes. O metrô de São Paulo abriu uma licitação para a instalação de  um circuito de segurança com reconhecimento facial.

A tecnologia do reconhecimento facial está um tanto próxima de nós. E aplicativos que compartilham nossos rostos com terceiros podem acelerar seu desenvolvimento, mesmo que sem o consentimento consciente dos usuários.

 

Fonte: G1 e portal TAB||

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