A dura batalha travada pela Justiça contra o submundo das drogas remete ao lendário confronto entre Davi e Golias. Políticas públicas criadas para banir o consumo e a venda de entorpecentes são pequenas se comparadas ao tamanho do conflito. Um exemplo é a Lei Antidrogas. Instituída para aliviar o sistema carcerário, concedendo penas alternativas aos dependentes químicos, causou efeito contrário, aumentando em quase três vezes o número de prisões. E o pior, as detenções aumentaram, mas o tráfico não recuou. Para ter a mesma vitória do franzino, mas audaz personagem bíblico, sobre o gigante Golias, são necessárias medidas urgentes, como atenção integral ao tratamento dos viciados e um combate eficaz ao comércio ilegal das substâncias tóxicas.
A lei 11.343/2006, que descriminaliza o uso de drogas e torna mais severas as penas ao traficante, completa cinco anos neste mês com um aumento de 286% nas prisões por tráfico em Minas Gerais. Em 2005, antes da legislação, 2.215 bandidos estavam encarcerados nas cadeias do Estado. Já no final de 2010, com a nova lei em vigor, eram 8.569 envolvidos com o comércio de entorpecentes atrás das grades. O número representa 22,7% da população carcerária, conforme dados da Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds).
O aumento das prisões é atribuído ao avanço do tráfico e às falhas na legislação que, por não estabelecer critérios sobre a quantidade da droga apreendida, possibilitou uma análise subjetiva por parte do judiciário para diferenciar o viciado do bandido. A análise é do advogado, mestre em Direito Penal, Antonio Gonçalves. Para ele, a lei completa cinco anos em meio a uma confusão entre o usuário e o traficante. Somado a isso, aponta o criminalista, houve um aumento sensível na pena de quem pratica o tráfico, que teve o mínimo elevado para cinco anos e o máximo para 15. Na lei anterior, a pena variava de 3 a 12 anos de detenção. ?O resultado não poderia ser outro se não o aumento desenfreado de presos com as mais variadas quantidades e qualidades de drogas, em um claro retrocesso normativo. Em alguns casos, o usuário, ao invés de ter uma pena mais branda, é considerado um traficante?, aponta Gonçalves.
O juiz titular da Vara de Tóxicos de Belo Horizonte, Edison Feital Leite, que atua na área há quase uma década, também critica algumas mudanças na lei com relação ao tratamento dado ao usuário. No entanto, ele destaca que os dependentes não têm sido colocados atrás das grades. Para o magistrado, o aumento das prisões se deve ao crescimento do tráfico, subsidiado pelo elevado consumo interno. ?A pessoa não se intimida mais com o uso do entorpecente. Desta forma, vale a lei da oferta e da procura. Como temos cada vez mais gente usando drogas, o mercado para abastecer esses dependentes químicos cresceu junto?, afirma o juiz, que tem mais de 7 mil processos de tráfico de drogas em andamento.
Uso de crack à luz do dia em BH
Escondido, solitário ou compartilhado na frente de qualquer um. Basta um cachimbo improvisado e um isqueiro. O estalo após a pedra ser queimada tem nome: crack. Eis a droga que mais arrasa e desestabiliza famílias inteiras. Em Belo Horizonte, o drama dos que dependem da substância confirma que o consumo não respeita hora nem lugar.
Descalço, com as roupas rasgadas e a mão encardida, o viciado M.B., de 29 anos, é a prova desta dura realidade. Agachado em um lote abandonado, ele acende seu cachimbo para fumar a pedra, assinando assim uma nova sentença de morte. O consumo ocorre em plena luz do dia, no Bairro Lagoinha, em um local conhecido como Cracolândia, próximo ao Departamento de Investigações da Polícia Civil.
Viciado assumido, M. conta que sempre morou na rua e faz de tudo por uma pedra de crack. Sem perspectiva de acolhimento, ele tem consciência de que sua vida acabou devido ao uso da droga, mas não acredita em sua própria salvação. ?Já tentei parar, mas a vontade de fumar é muito mais forte?, alega.
As limitações da lei nas punições aos usuários são criticadas por magistrados. Para eles, faltam políticas públicas capazes de fazer valer as medidas socioeducativas. O resultado, apontam juízes, é um estrago social e o aumento dos focos de violência.
A história de M. é apenas um exemplo. Em um ?passeio? de apenas 30 minutos pelas ruas, becos e viadutos do Bairro Lagoinha é possível perceber como o crack tem feito cada vez mais vítimas. Comprar a pedra, contam os viciados, é tarefa simples. Bastam R$ 5 e uma caminhada rumo ao alto do morro. Alguns, chamados de pequenos traficantes ? pois vendem pedras para garantir o consumo próprio ?, são ainda mais audaciosos. Eles comercializam a droga debaixo de viadutos, alheios aos carros e às pessoas.
O subsecretário de Políticas Antidrogas de Minas, Clóves Benevides, afirma que as forças de segurança do Estado reconhecem o problema e têm buscado soluções. Segundo ele, a legislação limita o trabalho da polícia no que se refere ao usuário. ?Temos focado nosso trabalho na conscientização. É preciso mostrar a esses dependentes a importância da nossa ajuda?.
Apontado por Benevides como um dos carros-chefes do combate, o programa ?Rua Livre? já foi iniciado. A proposta é chegar aos espaços públicos antes da droga. Locais de consumo e de venda serão ocupados com atividades culturais. A unidade móvel está em contato permanente com a PM, que pode ser acionada a qualquer momento para a repressão ao tráfico.
Difícil reabilitação
Enquanto o uso de drogas avança pelas cidades mineiras, as ações de combate têm se mostrado insuficientes. A começar pela falta de unidades terapêuticas para tratar a dependência química. Minas Gerais tem apenas 300 casas de acolhimento. São cerca de 4 mil vagas nas modalidades ambulatorial, permanência/dia, internação, abrigo temporário, entre outras. Além disso, outra preocupação é a divisão entre quem pode ou não pagar pelo tratamento. Médicos, juízes e profissionais da saúde são unânimes em apontar a carência de vagas e o acesso limitado ao serviço como principais entraves na recuperação dos viciados.
O cenário do tratamento ao dependente, apresentado em números, foi mostrado pelo subsecretário de Políticas Antidrogas, Clóves Benevides. Apesar da quantidade limitada de clínicas, ele reforça que existem outras formas de acolhimento ao usuário de drogas por meio dos serviços públicos de saúde, seja em hospitais ou nos chamados Centros de Apoio Psicossocial (Caps). Reportagem do Hoje em Dia publicada em fevereiro deste ano mostrou que existem 135 centros.
A constatação de que a droga se espalha, tendo impacto direto em Minas, a começar pela violência, ganhou as páginas do Diário Oficial do Estado, que publicou recentemente edital para financiar cem novos projetos na oferta de tratamento. Cada selecionado receberá, durante um ano, R$ 70 mil para serem investidos no acolhimento a estas pessoas. ?Temos uma série de projetos. Até o fim deste ano terão sido investidos R$ 70 milhões?, acrescenta Benevides.
O aposentado Robert William de Carvalho, que preside a ONG Defesa Social, afirma que todas as iniciativas são válidas e buscam, sempre, a reabilitação das pessoas. No entanto, a falta de estrutura e as limitações financeiras impedem que o trabalho colha melhores resultados.
?Primeiro precisamos mapear o Estado para saber onde estão sendo ofertados esses serviços e identificar as carências. Em seguida, é preciso investir e dar condições de funcionamento para esses espaços. E, por último, criar mecanismos para acompanhar e fiscalizar os trabalhos realizados?. Segundo ele, além de acolher, as punições previstas na lei ao usuário também precisam ser aplicadas.
1.323 usuários de drogas foram autuados em Minas Gerais
Dados da Central de Penas Alternativas (Ceapa) ? que acompanha a execução e monitoramento das penas educativas em Minas ? mostram que, de janeiro a julho deste ano, 1.323 pessoas foram encaminhadas ao programa, autuadas por porte ou uso de drogas ilícitas. Este número representa 28% do público atendido pelo Ceapa, que também trabalha com infratores de trânsito e outros delitos com a possibilidade de se cumprir penas alternativas.
Em BH, a referência gratuita para o tratamento do dependente químico é o Centro de Referência em Saúde Mental para Usuários de Álcool e outras Drogas (Cersam-AD). Mantido pela Prefeitura, o espaço fica no Bairro Bandeirantes, na Pampulha.
O tratamento aos usuários de crack responde por 32% da atual demanda. É o caso de W.R., de 27 anos. Aos 20, ele conheceu pela primeira vez a sensação de prazer e euforia proporcionados pelo crack. Com a compulsão, queria cada vez mais. Perdeu a família e começou a roubar para sustentar o vício. Demorou sete anos para iniciar o tratamento. Hoje, tem a consciência que ainda não se recuperou.
História semelhante tem T.C., de 28 anos. Sua euforia, no entanto, era resultado da cocaína. O vício começou aos poucos, quando ainda era um adolescente. O uso contínuo da droga provocou intensa dependência. Chegou a cheirar 30 gramas em um único dia. Parou de estudar, perdeu o emprego e foi internado em estado grave. Hoje, sonha em voltar a trabalhar e ser feliz ao lado de sua família.
O Cersam-AD funciona todos os dias da semana, das 7 às 19 horas. Para ter acesso ao tratamento, basta procurar a unidade. Não é necessário agendamento.
Internação compulsória é defendida para usuários de crack
Internar compulsoriamente dependentes químicos tem sido a última ação no combate aos danos provocados por substâncias como o crack. O tratamento obrigatório, no entanto, ocorre somente via determinação judicial com respaldo de assistentes sociais, médicos e outros profissionais da saúde. Semana passada, a polêmica veio à tona novamente, após o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, defender a medida para usuários de crack como forma de ?proteção à vida?.
Tendo atuado por mais de sete anos na Vara de Tóxicos de Belo Horizonte, conhecendo os dois lados da moeda ? antes e depois da Lei Antidrogas ? o magistrado José Eustáquio Pereira cobra mudanças na legislação. Com uma visão mais radical, ele afirma que o tráfico só resiste porque há usuários. Para Pereira, é necessário garantir aos juízes poderes para oferecerem ao dependente apenas duas possibilidades de reabilitação. ?Ou ele vai se tratar em uma clínica ou vai preso. Claro que todos vão preferir o tratamento?, afirma o juiz.
Para a psicanalista Soraya Hissa, o sucesso de um tratamento depende da colaboração do paciente. Segundo ela, a vontade do dependente deve ser respeitada, mas existem casos, principalmente com relação ao uso de crack, de pessoas que já não respondem por seus atos. ?O transtorno causado por esta droga precisa ser tratado de forma diferenciada. Nestes casos, somente a internação compulsória pode ser a salvação?, diz a psicanalista.

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