A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou nessa terça-feira (3) a regulamentação do uso medicinal de produtos feitos à base de maconha, que poderão ser produzidos no país e vendidos em farmácias.
Ao mesmo tempo, a maioria da diretoria da agência rejeitou a proposta de regulamentar o plantio da maconha para fins terapêuticos e científicos, ponto contra o qual havia forte oposição por parte do governo de Jair Bolsonaro.
Três dos quatro diretores da Anvisa
presentes na sessão de deliberação votaram por arquivar este ponto da
regulamentação — e o único voto a favor da medida foi do diretor-presidente da
agência, William Dib.
Em entrevista à BBC News Brasil, Dib
afirma que as decisões tomadas pela Anvisa hoje devem facilitar e
desburocratizar o acesso a estas medicamentos por parte da população.
Mas, ao mesmo tempo, devem levar a
uma maior judicialização da questão no país, com um aumento de processos
movidos por associações e cidadãos para obterem permissão para plantar cannabis
sob a alegação de que não têm condições econômicas para custear o tratamento de
outra forma.
No últimos anos, diversos estudos
científicos apontaram que substâncias extraídas da Cannabis sativa, como o
canabidiol (CBD) e o tetra-hidrocanabidiol (THC), seu princípio psicoativo,
podem ser usados para fins medicinais, em terapias para pacientes com
epilepsia, câncer e outras enfermidades graves.
Hoje, quem deseja ter acesso a
produtos a base de maconha no país deve pedir à Anvisa uma autorização de
importação. Desde janeiro de 2015, a agência permite que estes produtos sejam
trazidos do exterior quando comprovada a necessidade do paciente. Hoje, mais de
4,6 mil pessoas têm autorização.
Mas, há cinco anos, a Anvisa começou
a estudar uma mudança nas suas regras, com base no que diz a lei 11.343, de
2006, que institui o sistema nacional de políticas públicas sobre drogas. A
legislação proíbe “o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de
vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas
drogas”. Mas diz que a União pode autorizar essas práticas, “exclusivamente
para fins medicinais ou científicos”.
A proposta da agência era
regulamentar tanto a produção e a venda de medicamentos quanto o plantio da
maconha para fins medicinais e científicos, um processo que culminou com as
decisões tomadas nesta terça-feira.
Sem manipulação
A nova regulamentação estabelece as
regras para a fabricação e a importação desses produtos, sua comercialização,
prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização.
Agora, estas mercadorias passarão a
fazer parte de uma nova classe — “produto à base de cannabis”, ou
seja, ainda não serão classificados como medicamentos. Poderão ser adquiridos
em farmácias, mas não será possível manipulá-los em drogarias. Só será
permitida a venda do produto pronto, sob prescrição médica.
A norma entra em vigor em 90 dias a
partir da publicação da decisão da diretoria da Anvisa no Diário Oficial e será
revista pela própria agência daqui a três anos a fim de avaliar os progressos
de pesquisas sobre o tema.
Essa mudança deve fazer com que estes
produtos cheguem mais baratos ao cidadão, afirma William Dib, uma vez que
haverá mais opções no mercado nacional, e a concorrência deve levar a uma
redução do seu preço dentro de um prazo de mais ou menos um ano.
Hoje, há apenas um produto à base de
cannabis registrado e vendido no país, o Mevatyl, indicado para espasmos
musculares em quem tem esclerose múltipla. Ele é fabricado por uma empresa do
Reino Unido e comercializado a um custo médio de R$ 2,8 mil para sua dose
mensal.
Mas Dib acredita que a não
regulamentação do plantio deixa aberta a brecha que leva muitas pessoas a pedir
à Justiça a permissão para plantar maconha.
“O
remédio vai ficar mais conhecido, mais médicos vão prescrever, vai haver debate
e pesquisa científica. Então, isso aumenta o número de consumidores e podem se
multiplicar as autorizações judiciais para o plantio. Pode chegar a um momento
de total descontrole social, não só do aspecto quantitativo e qualitativo e de
segurança”, diz.
A avaliação vai de encontro à visão
de Emilio Figueiredo, advogado da Rede Reforma, uma organização sem fins
lucrativos que reúne profissionais desta área a favor de uma reforma da
politica de drogas brasileira, para quem o número de processos deve aumentar.
O advogado diz que a decisão da
Anvisa de não regulamentar o plantio foi “adequada”, por entender que
se trata de uma competência do governo federal. Mas ele afirma que a decisão da
Anvisa não resolve os entraves econômicos ao acesso à droga.
“O acesso vai ficar mais fácil,
mas para quem? Hoje, enquanto a dose mensal da única organização autorizada a
plantar maconha no país custa cerca de R$400, o produto vendido em farmácias
tem um preço sete vezes maior. E, mesmo com mais opções, vai continuar a ser um
produto muito caro e inacessível para a maioria da população”, diz
Figueiredo, que atuou em 26 das 51 ações que obtiveram permissão judicial para
plantio de maconha para fins terapêuticos.
“O direito fundamental à saúde
destas pessoas continuará a ser violado. Vamos fazer uma tsunami de ações
judiciais para fixar no país o reconhecimento do cultivo como acesso a
ferramenta terapêutica para graves moléstias.”
No entanto, o presidente da Anvisa
acredita que a decisão da agência abrirá caminho para que o governo, o
Congresso ou a própria agência revejam no futuro a decisão de não regulamentar
o plantio, a partir do momento que mais brasileiros usem produtos à base de
maconha e haja um debate mais amplo sobre a questão no país.
Leia a seguir os principais trechos
da entrevista com o presidente da Anvisa, que deixa o cargo e a diretoria do
órgão no próximo dia 20 deste mês e diz “estar contando os dias” para
que isso aconteça.
BBC News Brasil – Como o sr. recebe
essa decisão da Anvisa?
William
Dib – Em parte, com muita alegria, porque, por unanimidade, aprovamos o
registro, a comercialização e a produção de produtos de cannabis. Com registro
ágil e com previsão de se rever em três anos. Com isso, o acesso, tanto da
classe médica quanto dos pacientes, vai ser facilitado. E há também a questão
de pesquisa: vai ser muito mais fácil e ágil desenvolver pesquisas no país.
Nesse aspecto, vi positivamente.
No aspecto do plantio, que foi separado por uma questão estratégica, não passou por maioria absoluta. Fui o único a votar a favor. Os argumentos para o não plantio não me convenceram. Ele vai permitir a multiplicação de autorizações judiciais para o plantio. Pode chegar a um momento de total descontrole social, não só do aspecto quantitativo e qualitativo e de segurança.
Mas o governo está preocupado em ele
não autorizar (o plantio). Agora, o Judiciário autorizando, parece que está
tudo bem.
BBC
News Brasil – Por que o sr. acredita que pode haver uma judicialização maior
por parte de pacientes e associações?
Dib – As pessoas alegam
que o remédio é caro e que, plantando, há um barateamento do custo (do
tratamento) de doenças, pois os remédios são de uso contínuo. Esse argumento
tem feito grande parte do Judiciário ficar do lado das famílias e das
associações de pais de crianças que precisam da cannabis e de outros pacientes,
autorizando o plantio. Já existem muitas autorizações.
Em teoria, regulamentando, isso tende
a diminuir, porque você vai criar acesso ao medicamento. Mas, por outro lado,
pode aumentar, porque o remédio vai ficar mais conhecido, mais médicos vão
prescrever, vai haver debate e pesquisa científica. Então, isso aumenta o
número de consumidores e podem se multiplicar as autorizações judiciais.
Existe gente do bem, gente que não sabe (sobre o assunto) e gente mal informada. Quando você cria uma associação de 50 pais para plantar cannabis, você acha que eles vão abrir mão de cultivar para comprar o produto? Não, eles vão continuar querendo plantar. Se a gente regulamentasse o plantio, a Justiça poderia cassar essas autorizações individuais e para associações.
A Justiça primeiro não vai cassar
esse direito de ninguém, porque não está regulamentado. Vai ter mais médicos
receitando. Então, não vai ficar igual, as ações só podem crescer. Na teoria, é
isso que vai acontecer.
BBC
News Brasil – Por que o senhor fala em ‘descontrole social’?
Dib – O número de
receitas vai crescer exponencialmente. A ideia de que o fulano consegue o
produto porque ele planta pode se estabelecer, caso o Judiciário mantenha as
decisões de hoje, de que é um direito de todos o acesso ao medicamento. A
Justiça vai dar mais autorizações. Se hoje tem mil, vão ter 10 mil daqui a três
anos e assim por diante.
BBC
News Brasil – Esses habeas corpus que autorizam o plantio são baseados no
direito das pessoas à saúde e ao tratamento…
Dib – Não sei como
o Judiciário vai ver o acesso com a produção aqui. A Justiça pode baixar uma
norma dizendo: ‘está proibido dar novas autorizações de cultivo’. Isso não
depende da Anvisa nem do governo. O Judiciário é outro poder.
BBC
News Brasil – Quais foram as alegações dos seus colegas para rejeitar a
regulamentação do plantio?
Dib
– (Risos) Você não prefere perguntar para eles? Eu teria dificuldade de
explicar para você, pois eu mesmo não entendi as alegações deles. Tive
dificuldade de entender.
BBC
News Brasil – Por quê?
Dib – É igual
procurar pelo em ovo. São ponderações que… É que não querem que tenha o
projeto. Então, alega-se tudo. Disseram que precisaria consultar a polícia
local. Como se faria isso se eu não sei qual local vai haver o plantio? São
alegações difíceis de entender.
BBC
News Brasil – Na sessão, o senhor disse que achava muito curioso que para
concessão de autorizações da Anvisa não haveria problemas. O que o senhor quis
dizer?
Dib
– Meus colegas disseram que o Ministério da Agricultura afirma que as
sementes de cannabis precisam ficar em quarentena, pois poderia conter vírus e
fungos. Mas e o cara que tem autorização judicial para plantar? Ele compra a
semente pelo correio, e ninguém sabe o que ele está plantando. E aí não tem
problema nenhum?
BBC
News Brasil – Com isso o senhor quer dizer buscaram qualquer motivo para que
esse fosse o resultado?
Dib – Sim, vários
motivos.
BBC
News Brasil – E o senhor acha que esses motivos são inconsistentes?
Dib
– Me parece que poderiam ser aprimorados ou corrigidos. Quem quer fazer,
faz.
BBC
News Brasil – O senhor acredita que a Anvisa errou ao não regulamentar o
plantio?
Dib – Não vou dizer
que é erro ou não. Acho que perdemos a oportunidade. Mas ela vai ser recuperada
logo mais, via Congresso. Ou a própria Anvisa pode rever seus conceitos.
O mais importante é que o produto vai
estar acessível à população. Isso vai acabar gerando uma discussão. A
experiência vai fazer muita gente rever seu posicionamento.
BBC
News Brasil – Não tem problema por parte de quem?
Dib
– A Anvisa nem o Ministério da Agricultura não tem autorização judicial
para questionar. Chega a semente, e ele planta. E aí? Aí, não tem importância,
porque são milhares de pessoas?
Quantas empresas iriam cultivar a
cannabis no Brasil? Umas cinco ou seis, não mais que isso. Agora, com a
decisão, essas seis não podem plantar, mas milhares de pessoas podem (risos).
BBC
News Brasil – Qual outro argumento o senhor acha incoerente?
Dib – Como esse
processo é muito velho, várias instâncias foram ouvidas. Mas se perderam no
meio disso. Mas não ouvimos todo mundo que poderia ter sido ouvido.
BBC
News Brasil – O senhor acredita que isso teve influência no resultado?
Dib – Olha, o
resultado é esse. Então, agora vamos escrever por que o resultado é esse. Você
faz uma equação em que o resultado é 8. Como você vai fazer? 4 + 4? 5 + 3? 7 +
1? O resultado é 8. Não importa como você vai escrever, o resultado é: não pode
fazer o plantio.
BBC
News Brasil – O senhor acha que a não autorização do plantio pode encarecer o remédio
em comparação com um cenário em que o cultivo fosse permitido? Pois as empresas
que queiram produzir o remédio terão que importar a matéria-prima…
Dib – Com a
permissão da venda do remédio em farmácia, o preço do medicamento vai cair,
pois as pessoas não vão precisar mais importar individualmente. Uma coisa é
você trazer o produto para a Dona Maria. Outra coisa é você trazer para 3 mil
Marias. Então, a compra do produto em quantidade maior deve baratear o custo na
origem e aqui.
E vai ter concorrência: a farmácia A
contra a farmácia B. A tendência é reduzir custos.
BBC
News Brasil – Vai ser um preço acessível para a população em geral?
Dib
– Vai ser mais acessível que hoje. E outra coisa: com vai existir
registro, o SUS e o Ministério da Saúde pode autorizar a distribuição, como é
feito com outros produtos.
BBC
Brasil – Mas, pensando em uma empresa que pretende produzir o medicamento, ela
terá que importar a matéria prima. Caso ela cultivasse a cannabis aqui no
Brasil, esse remédio não ficaria ainda mais barato para o consumidor?
Dib
– Na teoria, sim. Hoje, me espantei com o voto do almirante (Antonio
Barra, diretor da Anvisa indicado por Bolsonaro). Ele disse que está sobrando
produto no exterior. Pode ser que o custo caia, não sei, não acompanho o
mercado de cannabis. Não sei se está no ponto de curva mais alto ou mais baixo
do preço.
BBC
News Brasil – Hoje, o único medicamento vendido com base de cannabis custa
cerca de R$ 2.800 por mês. A sua expectativa, com a regulamentação, é que eles
cheguem no mercado em qual patamar de preço?
Dib
– Acredito que a concorrência vai reduzir rapidamente esse custo, quando
houver concorrência. Vou fazer uma brincadeira: quando o Viagra foi lançado,
ele custava uma fábula. Hoje, o genérico custa dez vez menos em comparação
quando foi lançado o produto.
Os produtos farmacêuticos tendem a
reduzir o preço conforme aumenta o consumo.
BBC
News Brasil – O senhor estima qual será a redução do preço?
Dib – Não sou muito
bom nesse aspecto econômico. Mas as pessoas que conhecem esse assunto dizem que
há uma curva descendente (de preço) que dura um ano, um ano e meio, até que o
valor seja estabelecido. Ele vai caindo conforme aumenta a concorrência. Não é
uma queda súbita.
BBC
News Brasil – As pessoas comuns, além das classes médias e alta, vão ter
acesso?
Dib
– Com certeza. Já há projetos para que prefeituras e governos estaduais
possam pagar pelos medicamentos. Na hora que o laboratório e a distribuidora
estiverem em território nacional, muitos municípios e Estados vão agregar os
medicamentos. O SUS também pode fazer isso. No Brasil, infelizmente ou
felizmente, há judicialização: se o seu filho está doente, precisa de cannabis
e você não tem dinheiro, você entra na Justiça e o Estado tem de pagar.
BBC
News Brasil – O senhor acredita que essa restrição ao plantio ocorre por uma
falta de conhecimento ou até preconceito em relação à cannabis?
Dib – É difícil
julgar as pessoas. Acredito que eles misturam a questão da droga e do consumo
recreativo, ou do uso como entorpecente, e não separam a questão medicinal.
Veem risco e misturam conversa de droga com o produto medicinal.
O produto medicinal não tem efeito de
droga. Por via oral, não dá barato, as pessoas não ficam entorpecidas. Não dá
isso.
BBC
News Brasil – O sr. disse que o plantio foi discutido na Anvisa em separado da
produção medicinal por uma questão estratégica. Por que isso ocorreu?
Dib
– Quando cheguei aqui, o governo de plantão, da Dilma Rousseff, queria
liberar o plantio totalmente. Quem estivesse doente e precisasse de cannabis
poderia plantar. Nesse caso, você não conseguiria distinguir quem plantaria
para fins medicinais e quem cultivaria para recreação. Você não sabe o que ele
estaria plantando, porque não há controle da semente. Você não saberia se ele
está cultivando plantas com mais CBD (canabidiol) ou THC (tetrahidrocanabinol).
Não daria para controlar o que é produzido domesticamente, não há laboratório
nem fiscalização possível para monitorar isso.
Agora, o governo Bolsonaro assumiu e,
como eles são conservadores, não querem discutir em hipótese nenhuma a questão
do plantio. Paciência…
BBC
News Brasil – Até quando o sr. fica na Anvisa?
Dib
– Hoje é dia 3? São mais 17 dias, estou contando um por um.
BBC
News Brasil – Por quê?
Dib – Ah, porque
está difícil (risos).
BBC
News Brasil – O que está difícil? Muita pressão do governo?
Dib
– Você imagina, essa questão da cannabis é fichinha, é só o troco.
BBC
News Brasil – Quais são as dificuldades o senhor tem enfrentado?
Dib – Não, não. Não posso falar sobre isso com repórteres.
Fonte: BBC News ||