A portaria que autoriza servidores federais aposentados e militares da reserva a receber salários acima do chamado teto constitucional vai custar R$ 66 milhões ao ano, valor que seria suficiente para construir 37 creches, segundo a Associação Contas Abertas. O montante também poderia financiar a instalação de 110 leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), de acordo com a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB).

A nova regra permite que militares da reserva e servidores aposentados que voltam ao serviço público em cargo comissionado ou eletivo acumulem os salários com a aposentadoria. Antes, isso não era possível. O novo sistema vai permitir que esses servidores, na prática, recebam mais que R$ 39,3 mil por mês, o teto constitucional do salário do funcionalismo

Os supersalários, de acordo com o Ministério da Economia, vão beneficiar uma pequena parcela do funcionalismo público: cerca de mil servidores. Nesse grupo estão o presidente Jair Bolsonaro e parte dos ministros do governo federal.

Para o diretor-executivo da Contas Abertas, Gil Castello Branco, o valor a ser gasto com a nova regra pode ser pequeno comparado com todo o Orçamento federal, mas poderia ser usado para medidas que beneficiassem setores mais carentes da população.

“Esse valor de R$ 66 milhões é relativamente pequeno dentro do Orçamento como um todo, mas é uma quantia suficiente para a construção de 37 creches, que atenderiam, em dois turnos, 188 crianças. No total, seriam quase 7 mil crianças. Ou seja, 7 mil famílias que seriam beneficiadas, que precisam deixar os filhos em uma creche para poder ir trabalhar”, afirmou Castello Branco.

“Então, essa é a relação: nós estamos beneficiando mil pessoas que já ganham um bom salário, um salário fixo, que não estão afetadas pela pandemia, para continuar a prejudicar um grupo de pessoas que não tem, inclusive, como ir trabalhar”, completou o especialista em contas públicas.

Ele explicou ainda que, originalmente, o Orçamento da União para 2021 previa R$ 108,8 milhões para a construção de creches, só que o governo bloqueou R$ 58,8 milhões do valor.

“Ou seja, o governo bloqueou praticamente o mesmo montante que vai custar o chamado ‘teto duplex’”, explicou.

Valor de UTIs

O médico Ederlon Rezende, que é membro do conselho consultivo da AMIB, explica que o custo de montagem de uma UTI varia muito por conta da qualidade dos equipamentos e da alta procura em meio à pandemia: “pode ficar entre R$ 300 mil e R$ 900 mil.” Se considerarmos um valor médio, de R$ 600 mil, os R$ 66 milhões dos supersalários seriam suficientes para bancar a instalação de 110 unidades.

Em São Paulo, estado que tem a maior estrutura hospitalar do país, pelo menos 135 pessoas com Covid morreram, em março, à espera de uma vaga na UTI.

Privilégio para poucos

Esse novo privilégio se soma a vários outros, mais antigos.

Atualmente, 25 mil servidores têm rendimentos superiores ao teto do funcionalismo federal, segundo levantamento do Centro de Liderança Pública, com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. Isso representa apenas 0,23% de todos os servidores estatutários do Brasil, nos três níveis de governo.

Segundo o estudo, esses trabalhadores ganham, em média, R$ 8,5 mil acima do teto constitucional. Ou seja, cerca de R$ 50 mil por mês.

O custo total aos cofres públicos é estimado em R$ 2,6 bilhões por ano. Somente a União gasta R$ 1,1 bilhão com esses penduricalhos extrateto, de acordo com o levantamento.

“O Orçamento desse benefício (R$ 2,6 bilhões), para essa pequena camada do funcionalismo, representa mais do que o orçamento discricionário de vários ministérios. Inclusive da Agricultura, da Justiça e das Relações Exteriores. Portanto, é um valor absurdamente elevado”, destaca o presidente do Centro de Liderança Pública, Luiz Felipe d’Avila.

O chamado orçamento discricionário é aquele que não é obrigatório. São as despesas que o gestor tem liberdade para alterar, como investimentos e gastos com custeio (contas de água e luz, manutenção, contratos terceirizados e produtos de uso no dia a dia das repartições).

“Cada vez que se cria regras que diferenciam uma parcela do funcionalismo, geralmente a elite do restante, nós estamos criando mais um degrau de desigualdade no Brasil, em um momento que nós precisamos focar em diminuir as desigualdades, as diferenças”, afirma o cientista político.

Fonte: G1

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