Enquanto
esteve grávida de cada um de seus dois filhos — um menino que tem hoje 2 anos e
uma menina de 1 — a alagoana Luisa (nome fictício), 38 anos, precisou tomar um
total de 21 injeções de benzetacil, antibiótico da família da penicilina. Mesmo
assim, sua caçula, Tainá, nasceu com atrasos no desenvolvimento que persistem
até hoje. “Notei que ela não sentava sozinha, caía para trás, tinha a
função motora enfraquecida”, lembra a mãe, que mora em Maceió.
Ela ainda
se lembra do dia em que recebeu do médico a notícia de que tinha sífilis,
doença transmitida sexualmente e cercada de tabu e estigma, e que poderia
afetar também o bebê que ela esperava. “Na hora eu me abalei. Chorei na
sala, o médico ficou conversando comigo”.
Relatos
como o de Luisa, marcados por culpa e sofrimento, são comuns entre as mães que
têm a vida transformada pela sífilis, cuja incidência em grávidas e bebês vem
aumentando no Brasil na última década, especialmente a partir de 2010.
Nos adultos, a doença tem sintomas que podem evoluir de feridas genitais e manchas no corpo, febre, mal-estar e até lesões na pele, nos ossos e nos sistemas nervoso e cardiovascular, podendo também desenvolver quadros semelhantes à demência e à depressão. Em bebês, os efeitos são ainda mais catastróficos: malformações, microcefalia, comprometimento do sistema nervoso, sequelas na visão, nos músculos, coração e fígado, até aborto ou morte ao nascer, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
No ano
passado, 241 bebês brasileiros com menos de um ano de idade morreram em
decorrência da sífilis congênita, em que a infecção é passada pela mãe, durante
a gestação.
O boletim
mais recente do Ministério da Saúde, divulgado em outubro, aponta que, em 2018,
foram registrados 26,3 mil casos de sífilis congênita no país. Desde 2010,
quando a doença passou a ser de notificação obrigatória, o aumento foi de 3,8
vezes — passando de 2,4 para 9 casos a cada mil nascidos vivos.
O aumento
de uma doença tão antiga e vista como superada pela ciência surpreende, já que
a sífilis é considerada pelos médicos um mal de diagnóstico fácil e tratamento
barato. Como é possível que uma infecção facilmente detectável, que existe há
pelo menos 500 anos e cujo tratamento, inventado em 1928, é um dos mais simples
e baratos da medicina, atinja um número tão grande de pessoas — e crianças — no
Brasil e no mundo?
“A
ciência já resolveu essa doença. O tratamento é à base de penicilina,
extremamente barato. Não teria por que ter crianças nascendo com sífilis
congênita”, afirma a enfermeira Ana Rita Paulo Cardoso, mestre em Saúde
Coletiva pela Universidade de Fortaleza com uma tese que analisou casos de
sífilis gestacional e congênita nos anos de 2008 a 2010, em Fortaleza. A
pesquisa mostrou que a maior parte das mães teve acesso a consultas de
pré-natal, mas o que falta, segundo Cardoso, é melhorar a qualidade das
consultas.
No caso de mulheres grávidas, é possível detectar a doença com um teste rápido de sangue. Feito o diagnóstico, é preciso tomar uma dose semanal de penicilina benzatina (benzetacil), durante três semanas. Se o tratamento for seguido no início da gravidez, as chances de infecção do bebê são mínimas.
Um outro obstáculo ao tratamento adequado da sífilis parece ainda mais difícil de superar: a resistência dos homens em relação ao tema, negando-se a comparecer às consultas para receber tanto o diagnóstico quanto o tratamento adequados. Para que a doença seja erradicada com sucesso, mesmo em gestantes, precisam ser medicados tanto a mulher quanto todos os seus parceiros sexuais.
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Rotina pesada e falta de dinheiro
Luisa
descobriu a doença na gestação de seu primeiro filho, Thiago. O diagnóstico foi
precoce, ainda no primeiro trimestre, e ela tomou 13 injeções de antibiótico.
Ficou aliviada quando, ao nascer, os exames mostraram que o menino estava livre
da doença.
Na volta
da licença-maternidade em seu trabalho, como auxiliar de cozinha em um hotel em
Maceió (AL), Luisa foi demitida. No exame demissional, um novo susto: a notícia
de que estava grávida novamente, embora acreditasse estar prevenida por usar
pílulas anticoncepcionais e camisinha. E, apesar do tratamento, ela ainda tinha
sífilis. “O obstetra falou que provavelmente foi a quantidade de
benzetacil que eu tomei que cortou o efeito do anticoncepcional.”
Alguns médicos e estudos apontam que pode haver interferência de antibióticos no efeito de anticoncepcionais, embora haja discrepâncias entre a dimensão dessa interferência.
O marido
de Luisa, o pai da criança, nunca foi contaminado. A suspeita é de que ela
tenha recebido a infecção do ex-marido, de quem estava separada há mais de um
ano quando engravidou, e com quem não tem mais contato.
Com um ano de idade, a filha de Luisa tem uma rotina pesada de atendimentos com fisioterapeuta, fonoaudiólogo, psicólogo e enfermeiro. A mãe, que cuida da menina em tempo integral, não voltou a procurar emprego. O pai trabalha como ambulante, vendendo óculos e chinelos na beira da praia de Pajuçara, em Maceió, mas o movimento anda bem fraco neste ano, apesar do calor.
“Como
houve vazamento de óleo em praias aqui perto, como Maragogi e Japaratinga, os
turistas ficam achando que Maceió todinha está poluída.” A sogra ajuda
Luisa a pagar as despesas com alimentação desde que acabaram-se as parcelas do
seguro-desemprego. O resto das contas começa a se acumular.
Por que os casos de sífilis não param
de crescer?
Entre
2017 e 2018, a detecção da sífilis adquirida — ou seja, contraída por adultos
em relações sexuais desprotegidas com pessoas contaminadas — aumentou 28,3% no
Brasil, também segundo o Ministério da Saúde. Os sintomas podem evoluir de
feridas iniciais na região do contágio e manchas no corpo, febre ou mal-estar
para lesões na pele, nos ossos e nos sistemas nervoso e cardiovascular, e até
mesmo desenvolvimento de quadros semelhantes à demência e à depressão.
A doença
está distribuída por todas as regiões do país, aponta a coordenadora de
Vigilância das Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde,
Angélica Miranda. Das 241 mortes de bebês por sífilis congênita, 101 foram no
Sudeste, 77 no Nordeste, 27 no Norte, 21 no Sul e 15 no Centro-Oeste.
Os
maiores percentuais de casos de sífilis congênita em 2018 ocorreram em crianças
cujas mães tinham entre 20 e 29 anos de idade (53,6%); a maior parte possuía da
5ª à 8ª série incompleta (22,2%). Em relação à cor de pele das mães, a maioria
se declarou como pardas (58,4%). Além disso, 81,8% das mães de crianças com
sífilis congênita fizeram pré-natal, o que indica que não é o acesso a
consultas o maior problema.
Para
Daniela Mendes, enfermeira da área técnica de Infecções Sexualmente
Transmissíveis (IST) da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, é possível que
parte do aumento do número de casos registrados pelo Ministério da Saúde se
explique pela melhora na detecção e nos pré-natais sendo realizados no país.
Mas, em outra parte, esse crescimento reflete uma “lacuna na prática
sexual segura”. Entre 2017 e 2018, a detecção da sífilis adquirida — ou
seja, contraída por adultos em relações sexuais desprotegidas com pessoas
contaminadas — aumentou 28,3% no Brasil, também segundo o Ministério da Saúde.
“É uma doença que
existe desde a era pré-colombiana e o tratamento é muito barato. A detecção é
feita com um furinho no dedo, de livre acesso (nos postos de saúde), até para
adolescentes. Mas mesmo assim a gente não consegue controlar nem erradicar a
doença. A conta não fecha”, afirma Mendes. “Temos uma baixa adesão
das pessoas ao uso de preservativos (camisinha) e a se testar regularmente para
as infecções sexualmente transmissíveis.”
O
caminho, dizem os especialistas e o Ministério da Saúde, é conscientizar a
população em relação à saúde sexual: reforçar a consciência de que quem tem
vida sexual ativa precisa usar camisinha, e se tratar quando alguma doença
aparecer. “Na população jovem, o que se observa é que as pessoas estão
parando de usar camisinha. E, no caso da sífilis, é preciso ainda mais cuidado:
a relação sexual não é só penetração, e você pode contrair sífilis por sexo
oral, o que não é tão fácil com o HIV”, diz Ana Rita Cardoso.
A resistência dos homens ao
tratamento
Existem,
também, dois entraves significativos no tratamento: o primeiro é que se houver
atrasos longos nas doses, ele se torna ineficaz. O segundo é que, se a mulher
voltar a praticar sexo inseguro com um parceiro infectado, voltará a contrair a
sífilis. O jeito, então, é tratar também os parceiros.
Mas isso
não costuma ser fácil. Muitos estudos científicos mostram que os homens são
mais reticentes a tratamentos médicos em geral, e mais ainda quando se trata de
uma doença ligada à sexualidade.
“Existe um tabu, tanto das mulheres quanto dos profissionais de saúde no momento do pré-natal, de se falar (com as gestantes) sobre parceiros sexuais”, afirma Mendes. “Às vezes, as mulheres que vão chamar seu parceiro para se tratar acabam sofrendo violência por parte deles. Mas, se eu não o trato, a chance de a mulher se reinfectar é muito alta.”
“A reinfecção mostra a importância em se fazer também o pré-natal do parceiro”, afirma Angélica Miranda, do Ministério da Saúde.
Nas
orientações para a prevenção, a responsabilidade recai mais sobre a mulher: a
recomendação é que ela pense em fazer o exame para sífilis antes de engravidar,
como parte das consultas de rotina. “Tem uma questão do machismo que
bloqueia todo o tratamento”, diz Ana Rita Cardoso. “O homem tem que
participar, não é o tratamento mais fácil porque é injetável, mas não é questão
de escolha”.
A
pesquisa “Compreendendo a sífilis congênita a partir do olhar
materno”, das pesquisadoras Martha Helena Teixeira de Souza e Elisiane
Quatrin Beck, da Universidade Franciscana de Santa Maria, entrevistou 15 mães
de bebês portadores de sífilis congênita em Brasília. Nove dessas mulheres
receberam as três doses da medicação preconizada pelo Ministério da Saúde. No
entanto, apenas três parceiros realizaram conjuntamente o tratamento.
“A
reinfecção mostra a importância em se fazer também o pré-natal do
parceiro”, afirma Angélica Miranda, do Ministério da Saúde. Ela diz que
100 municípios brasileiros com o maior número de casos de sífilis participam,
desde 2017, de um programa especial da pasta, em que as prefeituras recebem
mais testes, e os esforços de pré-natal são intensificados, para aumentar a
detecção precoce da sífilis. No momento, estão sendo analisados os dados para
verificar se a ação teve impacto real e se levou a reduções nos números da
sífilis.
No Brasil
em geral, Miranda afirma que os números mostram que “houve uma
desaceleração, a doença continua a crescer, mas não com a mesma
frequência”. A taxa de casos notificados de sífilis congênita em bebês
entre 2018 e 2019 (segundo casos registrados até junho deste ano), por exemplo,
subiu de 7 para 7,1.
“Na
sífilis congênita, o desafio principal é aumentar a quantidade de diagnósticos
ainda no primeiro trimestre da gestação — incluir mais mulheres no pré-natal e
mais precocemente, com mais consultas. Quanto antes essa gestante for tratada,
mais se evitará a transmissão da doença pela placenta”, agrega Miranda.
Para além do Brasil, a sífilis é uma preocupação global, aponta a OMS, que registra 6 milhões de novos casos da doença a cada ano.
A incidência da sífilis congênita caiu globalmente entre 2012 e 2016, mas isso ainda representa cerca de 660 mil casos anuais da doença em crianças. “É a segunda principal causa evitável de natimortos, precedida apenas pela malária”, diz boletim da organização.
Por que as consultas de pré-natal
falham em detectar a sífilis?
Daniela
Mendes, da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, afirma que alguns
profissionais da saúde têm dificuldade tanto em discutir o tema com os
pacientes quanto em registrar corretamente a doença nos prontuários, o que
dificulta o tratamento subsequente.
Em sua
tese de mestrado em Fortaleza, a enfermeira Ana Rita Paulo Cardoso analisou 175
casos de grávidas que tiveram bebês com sífilis congênita. Chamou atenção da
pesquisadora o fato de que, mesmo quando o diagnóstico da sífilis na gestante
ocorria durante o pré-natal, é possível que a maioria dos testes tenham sido
aplicados tarde demais, considerando que a maioria dos relatórios de
notificação da doença foi feito durante o segundo e terceiro trimestres da
gestação.
“Estudos
mostram a importância de prever atendimento pré-natal de qualidade com
diagnóstico precoce em grávidas, e destacam que a evolução inadequada do
tratamento dado à mãe têm relação com a mortalidade das crianças”, diz o
estudo de Cardoso.
Vergonha, tabu e exames atrasados
Os casos
no Brasil são, provavelmente, subnotificados. Nos registros oficiais, a
informação de que uma criança morreu por sífilis só é registrada quando o
médico escreve no obituário, o que muitas vezes não acontece a pedido da
própria família, diz a pesquisadora, que cita o exemplo do Ceará, onde realizou
a pesquisa.
“Para
dizer ‘essa criança morreu por sífilis’ é preciso que o médico coloque isso no
atestado de óbito. E a maioria das vezes passa batido, coloca ‘causa
desconhecida’ para a morte. Há resistência, vergonha de falar, estão cercadas
de tabu. DST é muito associada à promiscuidade”, diz.
O estudo
explica que a sífilis pode ser transmitida ao bebê a partir da nona semana de
gravidez, embora a transmissão seja mais frequente entre a 16ª e a 28ª semanas.
É fundamental que a evolução do tratamento seja monitorada atentamente pelos
médicos, para evitar possíveis reinfecções.
Entre os
principais problemas das consultas, a pesquisadora aponta testes realizados com
atrasos e com resultados defasados; mulheres que abandonam o pré-natal; falta
de acompanhamento para chamar de volta as mulheres que abandonam o pré-natal;
dificuldades em trazer o parceiro e convencê-lo a seguir o tratamento.
“Podemos concluir que
as mulheres grávidas e os recém-nascidos com sífilis congênita não estão
recebendo tratamento adequado. Os recém-nascidos não recebem testes de rotina
para investigar a neurosífilis, como é a recomendação do Ministério da Saúde, e
muitas mortes e abortos poderiam ter sido evitados com a administração adequada.”
A filha
de Luisa já demonstra melhoras desde que começou o tratamento, conta a mãe. Já
está mais firme ao sentar, mas, com um ano de idade, ainda não dá sinais de
falar ou engatinhar. A menina fez exames mais precisos no dia 26 de julho para
saber quais os efeitos neurológicos da sífilis congênita, mas o resultado não
saiu até hoje.
“Eu
ainda não sei se ela tem microcefalia porque estou esperando os exames, que não
estão prontos por falta de material aqui”, lamenta. “Me mandam ligar
de 15 em 15 dias e ficar aguardando. Quando eu ligo, dizem: daqui a 15 dias a
senhora liga novamente, daí eu ligo. Desde julho”.
A
esperança de Luisa é conseguir respostas positivas sobre os pedidos de Bolsa
Família, que ela fez no mês passado, e do Benefício de Prestação Continuada,
salário mínimo pago pelo governo federal para pessoas de baixa renda “com
deficiência que apresentem impedimentos de longo prazo, de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial”.
“Tenho vontade de voltar a trabalhar, mas minha vida parou. Minha rotina é toda dedicada a ela”, diz Luisa.
Fonte: BBC News ||